Maria Isabel
por
Dedicado á memoria de minha irmã
Não dá quem tem,
senão quem quer bem.
Miquelina
Acordou Maria Isabel quando o sol buscava passagem atravez das fendas da janella, que tinha as cortinas apanhadas. Saltou logo do leito; envergou um roupão de bretanha e foi vêr á porta quem forcejava por abrir. Entrou a creada, rapariga alegre e maliciosa, que lhe disse:
― V. exc.a para que se fecha por dentro? Não tenha medo de ladrões; a porta da rua é muito segura. Teve o incommodo de levantar-se para abrir! Vinha perguntar-lhe se queria almoçar na cama. E' melhor deitar-se, está a tomar-se de frio. Pouco passa das nove horas.
― Meu Deus!.. replicou a orfã, tão tarde!.. Faça favor de sahir para eu me vestir.
― Então ha-de vestir-se só? A senhora ralhará comigo. Devo ajudal-a a vestir: as fidalgas não costumam vestir-se sós.
― Faça favor de me deixar. Eu não sou fidalga.
― Olá se é!.. Assim o fosse eu.. A snr.a D. Ermelinda, mesmo deitada, atira as pernas para fóra do leito, eu enfio-lhe as meias e aperto as ligas; depois...
― Vá então tratar d'isso.
― Não se levanta sem ser meio dia. Diz que todas as fidalgas fazem o mesmo: e ella que o diz, é porque o sabe. Já esteve em Lisboa. Sabe tudo o que não serve para nada. Diz que n'isto é que se conhece a fidalguoa. Mas como v. exc.a não quer nada, vou dar ordem para o almoço...
― Miquelina, não me dê excellencia. Sou uma pobre orfã, que estou aqui por caridade. A'manhã hei-de levantar-me cedo, para lhe ajudar a fazer os arranjos da casa.
― Menos isso!.. A snr.a D. Ermelinda disse-me que v. exc.a era agora quem aqui dava ordens. E' senhora desta casa, não creada.
― A benignidade da snr.a D. Ermelinda confunde-me!..
― Ah!.. a benidade d'ella é de deixar a gente de queixo cahido!.. Se v. exc.a quizer alguma coisa, tenha a bondade de tocar a campainha. Deixei Jose ao lume, preciso d'ir ver o que elle tem feito.
A creada shiu com um sorriso que lhe era particular.
Maria Isabel vestiu-se e fez a sua cama. Não estava satisfeita: o ar sarcastico de Miquelina não era proprio para lhe dar confiança.
A creada voltou com o almoço, e fez grandes exclamações ao ver o quarto arrumado; e finalisou dizendo:
― Se a sr.a D. Ermelinda sabe isto, põe-me na rua; e me prohibirá de tornar a pôr os pés em sua casa, e mesmo em todo o Villar.
― Villar!!.. Pois nós estamos em Villar!
― V. exc.a não o sabia? E' aqui que a snr.a D. Ermelinda se estabeleceu depois de pousa aqui, pousa acolá. Acha este nome muito bonito para um titulo, e como já ha a baronesa de Villar, quer ser condessa. Que isto de condessa nem por isso me agrada a mim. V. exc.a gosta? Faz-me lembrar a condeça em que eu metto a roupa para engommar.