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A REVISTA

Simão sahia de casa muito cedo a perambular pelas ruas, com os olhos muito abertos e muitos brandos; olhar de louco, como num encantamento, em que tudo lhe parecesse alegre e sentindo um extase de belleza não so deante das cousas bellas, mas tambem das feias, porque dizia elle «não existem cousas bellas nem feias, a belleza está em nós». Simão entrava no parque e depois de ficar tempos esquecidos sob as sombras das arvores, começava a andar desesperadamente por todos os recantos. Se parava, era para ficar contemplando os beijos voluptuosos com que as ondas de um grande lago beijavam a terra. Um dia que encontrei Simão à beira do lago, elle me disse com uma voz quasi extincta: o repuxo é um desejo do lago para o ceu. Arregalando mais os seus olhos azues, porque Simão tinha os olhos azues foi andando muito serio no seu terno já russo.

Passei muito tempo sem vel-o. A ultima vez que o encontrei foi em uma praia de banhos. Simão sempre alheio a si mesmo. Mas agora maltrapilho, com as botas rasgadas e as unhas de luto. Por entre a barba, via-se-lhe o rosto magro e pallido. Apezar dos seus vinte e um annos a barba era grisalha. Perguntei-lhe o que fazia alli. A resposta foi que estava alli «para ver o mar para sentir o mar, mas não dalli da praia, que não se via nada, e sim em logar que sò fosse mar e céu, e por isso me pédia que lhe emprestasse vinte mil réis, para, alugando um barco, satisfazer este desejo. Simão teve o dinheiro, e com o dinheiro o barco. Remou para fóra da barra, e como com elle não havia mais ninguem, foi remando sem pensar na distancia que percorria, tornando difficil a volta. Não, pensava na distancia e tanto asism que, quando voltou os olhos para os lados e para traz, os olhos não vendo mais que céu e mar, brllharam de alegria, da alegria que pode brilhar nos olhos de um louco. Tomou de uma machadinha que trazia comsigo e collocou-a no fundo do barco. Inclinando o corpo para o mar, molhou as mãos e a barba e, ficando de joelhos, começou um ritual, que uão sendo de nenhuma religião, devia ser da loucura. Depois disto sentou-se. As suas mãos tremulas pegaram na machadinha e, com ella, furaram o fundo do barco. A agua entrava em borbotões, emquanto Simão, extatico, olhava não para a agua que rompia pelo buraco, mas sim para o limite das aguas com o ceu.

Quando o barco ia se afundando, e com elle Simão, seus olhos brilharam com um brilho de arrependimento, ou, provavelmente, de beatitude.

Foi desta morte singular que morreu Simão, o mathematico.