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BIBLIOTECA ECONÓMICA.

mas eu tenho pressa, e preciso saber qual é a vossa resposta o mais cedo possível.

— Pois bem! voltai esta noite entre as seis e as sete, e dir-vos-hei qual é a minha resolução.

O negociante de escravos desappareceu depois de se ter despedido do dono da casa; e logo que a porta se fechou, Shelby disse consigo:

— A impudência deste homem irritava-me a ponto que estive tentado a deital-o pela escada abaixo; mas não tenho remedio senão atural-o. Se alguém me tivesse dicto que um dia havia de vender o pai Thomé, eu sustentaria que calumniava; e com tudo será mister passar por este golpe! Minha mulher ha-de oppor-se: não ha-de querer sobre tudo que venda o filho de Elisa; mas, ah! este mercador d’escravos é meu credor, e aproveita a minha má posição. Aqui está o que é ter dividas!

É talvez no Estado do Kentucky que a escravatura se mostra debaixo da forma mais suave. A agricultura alli predomina. Alli não se succedem periodicamente essas epochas d'actividade industrial, que necessitam tão rudes trabalhos, como acontece nas regiões mais meridionaes. Os senhores contentam-se com um rendimento regular, e não teem dessas tentações deshumanas, que triumpham sempre da nossa fragil natureza quando a perspectiva de um lucro rapido não tem outro contrapeso senão o interesse dos infelizes.

Se percorrermos o Kentucky, vendo a indulgencia de certos senhores, e a affeição quo lhes tributam certos escravos, poderemos acreditar por um momento na poetica utopia de uma instituição patriarchal; porém ha uma sombra nesse quadro, e essa sombra é a lei. Essa lei rege uma multidão de entes humanos, cujos corações palpitam, é cujas affeições são vivas, como cousas que pertencem a um senhor. Esse senhor pode ser benevolo; mas se se arruina, se morre, os seus escravos ficam expostos a trocar de um dia para o outro uma vida placida por uma vida de miseria. A melhor administração possível de escravatura não teria poder para destruir os seus inconvenientes.

O senhor Sheiby era em summa um bom homem, disposto a tornar felizes todos os que o rodeiavam, e que se occupava seriamente do bem-estar dos negros da sua propriedade. Tivera a desgraça de se lançar loucamente em especulações arriscadas, e letras assignadas por elle por uma somma considerável tinham caido entre as mãos de Haley.

Estas explicações dão a chave da conversação precedente. Approximando-se da porta, Elisa tinha apanhado algumas palavras, que bastaram para lhe revelar que um mercador de escravos fazia offerecimentos a seu senhor. De boa vontade teria ella escutado á porta antes de se retirar; porém a sua senhora chamava-a, e foi obrigada a retirar-se. Comtudo julgou comprehender que era seu filho que o negociante cobiçava. Intumeceu-se-lhe o coração; apertou involuntariamente contra o peito o pequeno Henrique com tanta força que elle poz-se a olhar para ella com ar estupefacto. Ao entrar no quarto da senhora Shelby, deitou por terra o lavatorio, deu um encuntrão na rneza da costura, e trouxe do toucador um comprido chambre em lugar do mandrião que lhe pediam.

— Que tendes hoje, Elisa? lhe perguntou a senhora Shelby.

— Oh! senhora! senhora! exclamou a mestiça; o, debulhada em lagrimas, deixou-se cair sobre uma cadeira.

— O que é que vos atormenta, minha querida?

— Oh! senhora, um mercador de escravos acaba de conversar com o meu senhor na casa de jantar. Eu ouvi-o.

— Então! mas que tem isso?

— Oh! senhora, julgaes o senhor capaz de vender o meu Henrique?

E os soluços da pobre creatura redobraram.

— Vendel-o! Não, é impossível. Bem sabes que o teu senhor nunca faz negocio com os mercadores do Meio-dia, e que nunca pensa em vender os seus servos em quanto elles se comportam bem. Porque pensas tu, doida, que queiram comprar o leu Henrique? Julgas que todos o olham com os mesmos olhos que tu? Vamos consola-te; pendura o meu vestido no cabide, pentea-me, e não tornes a escutar ás portas.

— Vós, senhora, nunca consentireis que...

— Sem duvida, não consentiria. Para que são essas inquietações? Mais depressa deixaria vender um dos meus filhos. Mas em verdade, Elisa, tornas-te muito orgulhosa d’esse rapazinho. Assim que um aqui entra, logo imaginas que o vem roubar.

Tranquillisada por esta linguagem, Elisa rio dos seus sustos, e procedeu com destreza ao vestir e pentear a sua senhora.

A senhora Shelby era uma mulher superior, a respeito de intelligencia e de sentimentos. Á generosidade, á grandeza d’alma, que caracterisam muitas vezes as mulheres do Kentucky, junctava uma alta moralidade e principios religiosos que sabia pôr em pratica. Seu marido, assaz indifferente em materia de fé, respeitava as convicções de sua mulher, cujos juizos chegava a temer. Deixava-a inteiramente senhora de melhorar a condição intellectual o physica dos seus servos, sem querer mesmo metter-se n’isso activaineute. Não pensava, como certos sectarios, quo o excesso das boas obras de pessoas piedosas aproveita ao resto dos fieis; comtudo parecia convencido que sua mulher tinha bastante caridade por ambos, e se lisonjeava vagamente de ganhar o céo, graças á super-abundancia de qualidades de que ella lhe offerecia o exemplo, e que elle não tinha a pertensão de egualar.

O que mais embaraçava o senhor Shelby, depois da sua conversa com o mercador de escravos, era a difficuldade de fazer consentir sua mulher no arranjo projectado, e de triumphar da opposição que esperava encontrar.

A senhora Shelby estava longe de adivinhar as preoccupações de seu esposo. Ella sabia fundamentalmente que elle era honrado, e era com uma completa boa fé quo repellira as suspeitas de Elisa. Não se dignou de prestar attenção a similhante cousa, e occupou-se exclusivamente de se preparar para uma visita que á noite queria fazer.

II.
A mãi.

Creada desde a infancia pela sua senhora, Elisa era por ella muito estimada.

Os viajantes que teem percorrido os Estados-Unidos do Sul teem notado a graça, a voz doce, as maneiras elegantes das mestiças e das mulatas. Estes dons naturaes são muitas vezes realçados por uma belleza offuscante, e quasi sempre por um exterior agradavel. Elisa, tal como a descrevemos, não é um retrato de phantasia. Reprosentamol-a tal como a vimos ha alguns annos em Kentucky.

Sob a protecção da sua senhora, Elisa tinha evitado as seducções que fazem da belleza uma herança tão fatal para uma escrava. Tinha casado com um mulato do talento, chamado Jorge, escravo n'uma propriedade visinha.

Este mancebo fora alugado por seu senhor a um fabricante de saccos. a sua capacidade tinha-o collocado no primeiro logar; e, apesar da sua falta de educação primitiva, tinha inventado com successo uma machina para separar os filamentos do canhamo. Tinha um modo agradavel e maneiras excellentes. Comtudo, como não era homem aos olhos da lei, as suas qualidades superiores foram submettidas ao dominio de um tyranno vulgar de ideias acanhadas. Este senhor tendo sabido da invenção de Jorge, dirigiu-se á fabrica para a ver. Foi recebido com enthusiasmo pelo director, que o felicitou por possuir um escravo tão precioso. Jorge, animado por tantos elogios unanimes, fez a explicação da sua machina, e exprimiu-se com tanto enthusiasmo e abundancia que seu senhor não pôde deixar do conhecer a sua inferioridade. Convinha a um semi-preto correr mundo, inventar machinas, e levantar a cabeça entre os brancos? Era um escandalo a que era mister pôr um termo afastando o audacioso, pondo-o a cavar terra, para lhe abater o orgulho. Em consequencia, o senhor pediu que se ajustasse a conta de Jorge, porque o queria immedialamente levar comsigo para casa.

— Mas, senhor Henrique, disse o director da fabrica, a vossa resolução não é um tanto repentina?

— Que importa? este homem não é meu?

— Nós estaríamos dispostos, senhor, a augmentar o preço do aluguer.