A CIDADE E AS SERRAS

cretones sujos, duma bata de lã cor de lilás com sotaches negros, de vagas garrafas de cerveja no mármore dum lavatório, e dum corpo tisnado que rangia e tinha cabelos no peito. E também me resta a sensação de incessantemente e com arroubado deleite me despojar, arremessar para um regaço, que se cavava entre um ventre sumido e uns joelhos agudos, o meu relógio, os meus berloques, os meus anéis, os meus botões de punho de safira, e as cento e noventa e sete libras de ouro que eu trouxera de Guiães numa cinta de camurça. Do sólido, decoroso, bem fornecido Zé Fernandes, só restava uma carcaça errando através dum sonho, com as gâmbias moles e a baba a escorrer.

Depois, uma tarde, trepando com a costumada gula a escada da rua do Hélder, encontrei a porta fechada — e arrancado da ombreira aquele cartão de Madame Colombe que eu lia sempre tão devotamente e que era a sua tabuleta… Tudo no meu ser tremeu como se o chão de Paris tremesse! Aquela era a porta do Mundo que ante mim se fechara! Para além estavam as gentes, as cidades, a vida, Deus e Ela. E eu ficara sozinho, naquele patamar do Não-ser, fora da porta que se fechara, único ser fora do Mundo! Rolei pelos degraus, com o fragor e a incoerência duma pedra, até ao cubículo da porteira e do seu homem que jogavam as cartas em ditosa pachorra, como se tão pavoroso abalo não tivesse desmantelado o Universo!

— Madame Colombe?

A barbuda comadre recolheu lentamente a vaza:

— Já não mora… Abalou esta manhã, para outra terra, com outra porca!

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