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aureas miserias, chegar á suprema inconsciencia de hoje.

— «Quem quer ser rico sem trabalhar? — isto é, quem quer viver para gosar de todos os luxos e commodidades, sem comprar com o seu labor o direito de possui-las?

Trabalhar, para quê?! Se foi a sorte que nos guiou á conquista do mundo; se é a sorte, a cega roda da fortuna que girando sobre si mesma nos pode dar a fruíção dos gosos sem o cançaço do trabalho? Se é a sorte, o arbitrio, o empenho, que eleva os nullos aos primeiros logares, e se é na esperança d’ella ser favoravel uma vez, que todos, desde o operario que arranca á sua miseria os vintens para a cautella até aos ricos que põem nas despesas obrigatorias um bilhete da loteria grande, têm a vaga esperança de um dia a sorte lhes ser favoravel!... A fatalidade, a sorte, o destino, são palavras de desânimo e resignação passiva, palavras que trazem impressas em si mesmas a porção de sangue mosarabe que por cá ficou...

A pouco e pouco toda a vida da cidade parou, suspensa por um pouco, emquanto não começavam os varredores o seu trabalho de forçados.

As estrellas punham tremores nervosos na impassibilidade do céo, uma aragem leve lembrava que a primavera ainda de todo não escorraçara o inverno... João e Bella sentiam-se tranquilisar, como que adormentados de espirito, longe do mundo que os irritava, muito alto sobre a cidade adormecida.