pesquisa de Chevalier e Gheerbrant (1999, p. 293).

Enquanto a maioria de suas presas está cega, a coruja caça à noite, quando alcança a potência máxima de visão e pode voar em lugares de muito pouco acesso para outras criaturas. Por isso, ver uma coruja durante o dia é mau presságio. Polissemia contraditória: o signo alude a significados sinistros ao mesmo tempo em que evoca tudo que é bonito, perfeito, bacana ou agradável, conforme sintetiza a expressão chouelle da língua francesa. Na bipolaridade do claro-obscuro, que reintegra o apolíneo e o dionisíaco, a acuidade noturna da coruja fez dela um grande símbolo da sabedoria e do conhecimento no mundo antigo. “Ela está ligada à deusa grega Atena, à qual Homero já associava o epíteto de glaukopi (“aos- olhos-de-coruja7), talvez por sua visão nas trevas.” (PRIER, 1986, p. 197, tradução nossa).

Admiramos a potência do olhar da coruja. De fato, sua cabeça pode pivotar 270o e, com ela, seus enormes discos arredondados. Todavia, esses olhos salientes só lhe permitem ver em um raio de 70o sobre um campo de visão total de 1800. É a capacidade de audição deste pássaro, associada à visão móvel, seu maior trunfo, o que faz dele um grande caçador. As orelhas, situadas em posições diferentes da cabeça (uma mais alta que a outra), captam as variações de tempo da chegada de ondas sonoras de outros corpos, permitindo-lhe localizar sua presa sem necessidade de vê-la. É dessa forma sinestésica que a coruja enxerga no escuro e acaba, no imaginário simbólico, evocando o valor dos grandes sábios cegos, como Homero, Milton e Borges, aqueles que sabem dizer o que os olhos não veem.

A maior parte das aves de rapina noturnas desapareceu das áreas urbanizadas e zonas periurbanas. Para elas, que amam paisagens antrópicas, os meios de transporte se transformaram em armadilhas ecológicas. Atropelamentos por veículos são a causa corriqueira de extermínio das coruj as, que têm nas margens das rodovias sua área potencial de caça aos animais que a atravessam (GUINARD, PINEAU, 2006). Ofuscadas pelos faróis e luzes, não conseguem evitar os automóveis. Como o flâneur, a coruja também é uma espécie ameaçada de extinção nas cidades pelo que João do Rio (2008b, p. 47) chamou de “a era do automóvel”. A coruja é um quase-invisível.

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Paris, Nova York, Londres, Rio de Janeiro, São Paulo... Metrópoles são cenários recorrentes de mudanças abismais e desorganizadoras, de choque de valores e embates de projetos político-sociais. Gênero híbrido entre jornalismo e literatura, a flâneríe emerge no intervalo entre tradições e modernidades em eterno movimento de continuidade e ruptura.

Traz a experiência de um narrador deambulante que testemunha no seu corpo-cidade as

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Anu. Lit., Florianópolis, v.21, n. 1, p. 11-31, 2016. ISSNe 2175-7917