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CARTA DE GUIA DE CASADOS

possa haver vontade para o bem servir, pode ser que nem por isso haja entendimento para o bem aconselhar ; porque entendimento, e vontade ainda se ajuntam menos vezes, que a honra, e o proveito : e ela, com que seja potência poderosa, nem sempre guia ao acêrto, se lhe faltam olhos de suficiência.

Grandes cousas deixou escrito a antiguidade, para advertência dos casados. Muitas são, e graves são ; a que também os modernos acrescentaram outras, ou nos puseram em outras palavras as antigas.

Mas nós aqui, senhor N., nos havemos de entender ambos em prática como do lar, a cujo abrigo, nestas longas noites de janeiro, vou escrevendo a v. m. estas regras em estilo alegre, e fácil, qual requer o estado, e idade de v. m., bem que tam diverso do meu humor, e de minha fortuna.

Darão licença os Sénecas, Aristóteles, Plutarcos, e Platões ; nem ficaremos mal com as Pórcias, Casandras, Zenóbias e Lucrécias ; tudo tam desenrolado nestas doutrinas ; porque sem seus ditos dêles, e sem seus feitos delas, espero nos faça Deus mercê de que atinemos com o que v. m. deseja de ouvir, e eu procuro dizer-lhe.

Não sou já mancebo. Criei-me em Côrtes ; andei por êsse mundo : atentava para as cousas ; guardava-as na memória. Vi, li, ouvi. Êstes serão os textos, êstes os livros, que citarei a v. m., neste papel ; onde juntas algumas histórias, que me fôrem lembrando, pode mui bem ser não sejam agora menos úteis que essa máquina de gregos, e romanos, de que os que chamamos doutos, para cada cousa nos fazem prato, que às vezes nos enfastia.

Ora assentamos que qualquer mudança causa estranheza. Mudar de umas casas a outras é em alguma