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CARTA DE GUIA DE CASADOS
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passo. Ao pai, ao irmão, a tam chegados parentes, aos muito amigos, e muito sisudos, poderia ser lícito que dêsse o casado alguma vez mostra da satisfação que tinha dos dotes do ânimo, que em sua mulher havia, e estimava.

Não são poucos, nem pouco grandes aqueles, que entremetendo de cortesãos, ou engraçados, gabam em público as qualidades de suas mulheres, ou falam nelas : cousa, a meu juízo, indigníssima, e digníssima de grande repreensão. Eu fiquei um dia como morto, falando com um fidalgo de idade, e autoridade, porque me disse, estando sua mulher doente de um peito, que fulana estava muito afligida, porque tinha as tetinhas muito delicadas.

Estando, uma noite (qual estas) en Flandres, em certa casa, onde assistiam grandes pessoas, foi um dos circunstantes tam pouco advertido, que tirou o retrato de sua mulher, para o mostrar aos outros. Era de uns que se fazem com diferentes trajos, que se lhe vão vestindo à vontade do apetite dos olhos : que tantas salsas tem inventado o vício para a vista, como para o gôsto. Sucedeu pois que estava então o bom do retrato em figura de alferes, e não parecia mal. Achava-se na mesma casa um dos convidados, mancebo bem ilustre, mas muito dado aos costumes da terra ; e como todos estivéssemos sôbre ceia (o que neste se enxergava melhor que nos outros) deu-lhe na cabeça levar da mão ao simples do marido o retrato da mulher, que beijava, e abraçava mais francamente, que se fôsse sua, dizendo-lhe : Ó alferes mio ! Ó alferes mio ! e mil requebros descompostos. Enfim o negócio procedeu de feição, que todos viemos às pancadas, e por pouco se não matam mais de dous ; com tal vergonha, e escândalo,