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O espião allemão



Abre a historia. Escuta. Só ouvirás rumores de guerra. Aquelle tropel desapoderado? E' a avalanche tartara. Tamerlão, o tigre coxo, derrama sobre a Persia legiões de féras — e leva a chacina a proporções inauditas. Seu capricho exige, em Ispahan, setenta mil cabeças humanas. Cada secção do exercito lhe ha de fornecer uma quota. Fartos, cançados de cortal-as, os soldados entram a adquiril-as, pagando a moeda de ouro cada uma. Era bom negocio: a offerta cresceu e o preço baixou meia moeda. Reunidas as setenta mil, Timur construiu torres de craneos em redor da cidade...

Ruge a sangueira além. E' em Dehli. Timur, tigre precavido, antes de bater-se com Mahomet IV delibera alliviar o exercito de cem mil prisioneiros incommodos. Solução magistral: degola-os...

A vaga prosegue, chega a Ancyra, esmaga Bajazeto, o grande sultão, e passa...

E acolá? Assyria. De Ninive, antro de leões famintos, descem para a carniçaria os reis flexeiros. Assurnizrhapal canta os proprios feitos em inscripções chegadas até nós: «Construí um muro diante das portas da cidade e forrei-o com a pelle dos chefes. A outros emparedei vivos, a outros empalei ao longo das muralhas. Fiz arrancar o couro, em minha presença, a innumeros e revesti paredes com esse couro semi-vivo. Reuni cabeças em fórma de corôas e os corpos entrelacei como guirlandas.»

A vida da Assyria é toda ella essa primorosa carnificina. Tuklatabazar, Assurbanipal, Nabuco, Sargão — todos os magarefes reaes viram a sua pericia em arrancar o couro a creaturas vivas cantada pelos poetas, commemorada pela architectura, admirada pelos posteros.

Timur passou. Passou a Assyria. Homens e coisas passam, mas a guerra fica.

E' a guerra uma permanente. O homem tem a vocação do morticinio. A arte apotheósa a carniça. Os poetas só ascendem ao epico si o bafio do sangue lhes fumega a inspiração. A belleza suprema é Achilles fendendo craneos, do frontal á nuca e a historia da humani-