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O romance do Chopim


Ouviamos no cinema a valsa precursora da primeira fita quando penetrou na sala um casal estranho. Ella, feiarrona, na edade em que a natureza começa a recolher uma a uma todas as graças da mocidade. Tirara-lhe já a frescura da pelle e o viço da côr, deixando em troca as sardas e os primeiros pés de gallinha. Tirara-lhe tambem os flexuosos mencios do corpo, a garridice amavel, os tiques todos que, sommados, formam essa teia de seducção feminina onde se enreda o homem para proveito multiplicativo da especie. Quasi gorda, as linhas do rosto entravam a perder-se num empaste balofo. Certa pinta da face, mimo que aos dezoito annos inspiraria sonetos, virára verruga, com um torcicolado fio de cabello no pincaro. No nariz amarellecido cavalgava o pince-nez classico da professora que se preza.

Em materia de vestuario suas roupas escuriças, mais attentas á commodidade que á elegancia, denunciavam a transição da moda para o «fóra da moda».

Elle, bem mais moço, tinha um ar vexado e submisso de «coisa humana», em singular contraste com o ar de dona da companheira. O extranho do casal residía sobretudo nisso, no ar de cada um, senhoril do lado fraco, servil do lado forte. Inquilino e senhorio; quem manda e quem obedece; quem dá e quem recebe. Ella falava d'alto, sem volver o rosto. Elle ouvia de baixo, humilde, attento. Visivelmente um caso conjugal onde cantava a gallinha e o gallo chocava os pintos.

Meu amigo apontou o homem, com o beiço e murmurou:

— Um chopim.

— Chopim? repeti, interrogativamente, deante da palavra que ouvia pela primeira vez.

— Quer dizer, marido de professora. O povo alcunha-os assim, tirando analogias do passarinho preto que vive á custa do tico-tico, conheces?

Lembrei-me da scena tão commum em nossos campos, e puz-me a observar o casal com maior interesse, mormente depois de começada a fita, relissima salgalhada com o enfadonho adulteriozinho francez por base. Já elles não tiravam os olhos da tela, salvo o marido, que, para ouvir melhor algum