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O luzeiro agricola


I

Sizenando Capistrano é inspector agricola do centesimo destricto. Incumbe-lhe estudar, guiar, fomentar a pecuaria, elaborar relatorios, ensinar o uso de machinas agricolas, preconisar a polycultura, combater a rotina e, ao fim de cada mez, perceber na collectoria a realidade de setecentos mil réis.

Antes de inspector Capistrano fôra poeta. Cultivara as musas (não a musa paradisiaca, mas a grega Polymnia); não sabia que cousa era um pé de café, mas entendia de pés metricos, pés quebrados e fazia pés d'alferes a todas as divas do Parnaso. Tal cultura, entretanto, emmagrecia-o. A.sua producção de hendecassyllabos, alexandrinos, quadras, odes, sonetos, poemas, vilancetes, eglogas, satyras, anagrammas, logogriphos, charadas electricas e enigmas pittorescos, comquanto copiosissima, não lhe dava pão para a bocca nem cigarro para o vicio. A pallidez de Caistrano, sua cabelleira á Alcides Maya, sua magreza á Fagundes Vareila, seu spieen á Lord Byron e suas attitudes fataes, ao envez de lhe aureolarem a face de um nimbo de poesia, commiseravam o burguez, que, ao velo deslizar como alma penada pelas ruas, horas mortas, de mãos no bolso e olho nostalgicamente ferrado na lua, dizia condoido:

— Não é poesia, coitado, é fome...

Os editores artilhavam a cara de carrancas más quando Capistrano lhes surgía escriptorio a dentro, sopesando a arroba de versos primorosos candidatos a edição.

— São versos puros, senhor, versos sentidos, cheios d'alma. Virão enriquecer o patrimonio lyrico da humanidade.

— E arruinar o meu patrimonio economico — retorquia a féra. De lyrismo bastam-me aquellas prateleiras que editei no tempo em que era tolo e que se não vende nem a peso.

— O' vil metal! murmurava o poeta franzindo os labios num repuxo de supremo enojo. O' mundo vil! O' torpe humanidade! Em que te distingues, Homem, rei grotesco da creação, do suino toucinhento que espapaça nos lameiros? Manes de Juvenal! Eummenides! Musas da Colera! Inspirae-me versos de fogo onde apúe té os penetraes da al-