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A poesia e o poeta

(Ricardo Gonçalves)


Na lama da estrada, ao pé da porteira, uma orla de pétalas côr de ouro — flores de ipê? — engrinaldam as pocinhas d'agua côr de telha.

Mas ao chape-chape do cavallo que se approxima, ó linda revoada de borboletas amarellas dentro de cujo arabescar eu passo!

Tontinhas!...

Como me veem afastar socegam, e uma a uma pousam de novo, asas a prumo, immoveis, como flores de ipê dispostas em grinalda.

A saudade commenta dentro em mim:

— Um soneto de Ricardo...

***

De bruços no remanso de um pôço, á sombra de ingazeiros por cuja galhaça pendem bainhas retorcidas — pelludos escrinios duma polpa que furtou á neve a côr e ao velludo o macio — contemplo um grupo de guarús que gyram resabiados em torno d'uma «vaquinha» de elytros verde gaio, que cahiu na agua e bóia pernejando.

Um João-bôbo espia-me de perto, inclinando a cabecita.

Rumoreja longe o rio, na corredeira.

Bisbilhos, cicios, tentativas de som grypham o silencio sombrio da grota.

E a saudade «pensa» dentro em mim:

— Versos de Ricardo...

***

Bordejando a ilha das Palmes desliza a canôa no berylo liquido da costeira.

Manuel rema á popa, Juvenal á prôa.

Como é loquaz o Manuel!

Não tem fim a historia da tintureira que embicheirou um dia lá pelas alturas da Moéla.

Afla o mar como um seio de menina agitado dos primeiros sustos de amor.

Está calmo, está macio.

Sopram brisas de sudoeste.

Duas gaivotas, immoveis, na lage do Major, longe, descansam juntinhas, como pombas...