ISBN 1984-767X
se até o verso 62. O tom de ambas é em algo diverso. Na primeira parte, Gilgámesh é louvado por seus feitos enquanto os de um rei sábio que, para realizá-los, não se furtou a inúmeros trabalhos e penas; já a segunda parte opta por explorar uma visão mais grandiosa do herói e de suas façanhas.
Na parte nova do poema há dois grandes feitos atribuídos a Gilgámesh, o primeiro deles sendo a construção do templo de Ánu e Ishtar (o Eanna), bem como das muralhas de Úruk, para cuja comprovação da grandeza se convida o próprio leitor:
Ele fez a muralha de Úruk, o redil,
E o sagrado Eanna, tesouro purificado.
Vê sua base: é como um fio de lã,
Olha seus parapeitos que ninguém igualará.
Toma a escadaria, que há ali desde o início,
Aproxima-te do Eanna, residência de Ishtar,
O qual nem rei futuro nem homem algum igualará. (v. 11-17).
O segundo grande feito é a inscrição, pelo próprio protagonista, em tabuinha de lápis-lazúli, do relato que o leitor lê – de novo, portanto, usa-se do poderoso recurso de envolver e comprometer o recebedor com o que se conta.[1] Assim, prossegue o narrador:
Busca o cofre de cedro,
Rompe o ferolho de bronze,
Abre a tampa do tesouro,
Levanta a tabuinha lápis-lazúli, lê
O que Gilgámesh passou, todos os seus trabalhos (v. 24-28),
o que se segue imediatamente, em nova demonstração da perícia de composição de Sîn-lēqi-unninni, sendo, ao que parece, o proêmio encomiástico do poema antigo:
Proeminente entre os reis, herói de imponente físico,
Valente rebento de Úruk, touro selvagem indomável:
Vai à frente, é o primeiro.
Atrás vai e protege os irmãos.
Margem firme, abrigo da tropa,
Corrente furiosa que destroça baluartes de pedra.
Amado touro de Lugalbanda, Gilgámesh perfeito em força,
Cria da sublime vaca, a vaca selvagem Nínsun.[2]
Alto é Gilgámesh, perfeito, terrível:
Abriu passagens nas montanhas,
Cavou cisternas nas encostas do monte,
Cruzou o mar, o vasto oceano, até o sol nascente,
Palmilhou os quatro cantos, em busca da vida,
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- ↑ Era costume dos reis registrar numa estela (narû) algum acontecimento importante de seu reinado, visando a torná-lo público (cf. 1, 10). Um narû pode ter ainda o valor de documento jurídico, pode marcar uma fronteira ou ser a “pedra fundamental” (feita realmente de pedra ou então de prata, ouro ou bronze) de um templo, enterrada nas fundações ou posta em seu interior (cf. SEG, p. 109). Considerando-se o que se diz nos v. 24-28, que marcam o fim da introdução ao poema, parece que se quer dar a entender que se trata da última hipótese. Cumpre todavia recordar que, longe de pretender um valor documental, a referência à inscrição constitui um recurso poético que provavelmente deveria ser percebido enquanto tal pelo leitor (cf. Oppenheim, Mesopotamia, p. 258, apud Dickson, The wall of Úruk, p. 27), ao qual o texto se dirige explicitamente.
- ↑ Lugalbanda é considerado, na tradição dominante, o pai de Gilgámesh. Trata-se de um rei de Úruk divinizado, herói do poema sumério que leva seu nome. A expressão rīmu ša Lugalbanda dá margem, talvez intencionalmente, a vários entendimentos, tendo em vista a existência de termos homófonos ou quase: rīmu, ‘touro selvagem’; rīmu, ‘dom’ dos deuses; rîmu, ‘amado’ (cf. CDA, s. v.). Minha tradução (“amado touro”) buscou preservar a mescla de sentidos possível. A mãe de Gilgámesh é Nínsun, deusa tutelar de Gudea e Lagash, filha dos deuses Ánu e Uras. Seu epíteto é “Vaca-Selvagem” (rīmat).