E-hum
Dossiê: O Mundo Antigo: Literatura e Historiografia

ISBN 1984-767X

Que um coração tempestuoso se lhe oponha,
Rivalizem entre si e Úruk fique em paz! (1, 95-98)

Assistimos então à criação de Enkídu, na forma comum nas tradições do Oriente Médio, isto é, usando argila como material:

Arúru, isso quando ouviu,
O dito de Ánu concebeu no coração.
Arúru lavou as mãos,
Pegou de argila e jogou na estepe:

Na estepe a Enkídu ela criou, o guerreiro,[1]
Filho do silêncio, rocha de Ninurta,[2]
Pelos sem corte por todo o corpo,
Cabelos arrumados como de mulher:

Os tufos do cabelo, exuberantes como Níssaba,[3]
Não conhece ele gente nem pátria,
Pelado em pelo como Shakkan,[4]
Com as gazelas ele come grama.

Com o rebanho na cacimba se aperta,
Com os animais a água lhe alegra o coração. (1, 99-112)


É nesse bebedouro que Enkídu será visto por um caçador, que relata o que viu ao pai, que o aconselha a contá-lo a Gilgámesh. Começa aí a bela sequência que detalha o processo pelo qual Enkídu será humanizado e civilizado, tornando possível que passe a viver em Úruk. Tanto o pai do caçador, quanto Gilgámesh sabem que essa humanização e civilização cabem a uma prostituta, Shámhat, ou seja, é pelo coito com uma mulher que Enkídu abandonará a vida selvagem, compartilhada com os animais, assumindo sua humanidade.[5] Cito extensivamente o episódio, felizmente bem conservado nos manuscritos:

Partiu o caçador, consigo levou a meretriz Shámhat,
Pegaram o caminho, empreenderam a jornada,
No terceiro dia, ao lugar aprazado chegaram.
O caçador e a meretriz de tocaia sentaram-se.
Um dia, um segundo dia no açude sentados ficaram;
Chegou o rebanho, bebeu no açude,
Chegam os animais, a água lhes alegra o coração –
E também ele: Enkídu! Seu berço são os montes!

unibh
e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 1, Janeiro/Julho de 2015 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

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  1. Enkídu é um nome sumério cuja forma mais antiga é en.ki.dùg; aparece em geral na documentação acádia como en-ki-du e raramente como en-ki-tu (supondo-se que a penúltima sílaba fosse longa na poesia babilônica: Enkīdu); na tradução do poema para o hitita, o nome apresenta ainda a forma en.gi.du ou en.ki.ta mais terminação de caso. O sentido do termo em sumério é ‘senhor do lugar agradável’, a proposta de que pudesse significar ‘Enki o criou’ (equivalente ao acádio Eabāni, ‘Ea o criou’) mostrando-se inconsistente, ainda que se admita que, no final do segundo milênio, possa ter sido interpretado dessa forma, de acordo com o gosto por etimologias então em curso (cf. Worthington, On names and artistic unity in the standard version of the Babylonian Gilgamesh Epic, p. 409-414, teria sido Shámhat, a prostituta, que teria, no verso 174 abaixo, nomeado Enkídu, seu nome sendo de início uma exclamação com o significado de “feito por Enki!” ou algo semelhante). Enkídu aparece como companheiro de Gilgámesh desde os textos em sumério, em que se registram duas tradições divergentes: numa ele é chamado de ‘servo’ de Gilgámesh (este sendo considerado o lugal, isto é, o rei de Enkídu); noutra, especialmente concernente à morte de Gilgámesh, ele é referido como um amigo precioso. Enkídu não aparece fora do ciclo de Gilgámesh, a não ser num encantamento babilônico antigo (cf. George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 138-144). Reconhece-se que um traço distintivo do poema de Sîn-lēqi-unninni (tão importante quanto a exploração da temática da mortalidade) é o papel nele atribuído a Enkídu como efetivo companheiro e igual de Gilgámesh (cf. Sasson, The composition of Gilgamesh Epic, p. 265-266).
  2. No segundo hemistíquio, lê-se kișir dninurta (força de Ninurta), o termo kișrum significando ‘nó’, ‘amarração’ com junco, com corda; ‘concentração’, ‘grupo’, ‘aglomeração’, ‘aglomerado’; aplicado a montanhas (kișrāt šadî, ‘montanha de pedras’), ‘rocha’, ‘pedra’; determinado por um nome divino, como aqui, kișir significa ‘fortalecido’, ‘sustentado’ por um deus (cf. kașāru(m), ‘amarrar’, ‘dar um nó’, ‘juntar’, ‘reunir’). Como está em causa o deus Ninurta, a expressão indica que é ele quem dá consistência e sustentação a Enkídu. Ninurta era associado a grandes feitos guerreiros, especialmente em combates singulares contra um rival valoroso – como caberá também a Enkídu enfrentar Gilgámesh. Minha tradução por “rocha de Ninurta” leva em conta a nova ocorrência de kișrum, aplicado pelo caçador a Enkídu, no v. 125.
  3. A imagem alude ao grão "cabeludo" da cevada madura, a deusa Nísaba (Níssaba ou Nídaba) tendo o “cabelo de cevada amarrado em grossos feixes” (cf. George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 785-786, em que se apresentam exemplos relativos à deusa). Nisaba estava tradicionalmente relacionada com esse cereal e, posteriormente, também com a contabilidade e a escrita. O pictograma que a representava desde a época suméria era uma espiga de cevada, sendo cultuada desde a época dinástica antiga e considerada irmã de An e Úrash. Fazia parte do panteão de Lagash, onde era tida por irmã de Enlil e esposa de Haya. Em época posterior, por sua relação com a escrita, foi considerada esposa do deus-escriba Nabû. Como termo comum, nissabu/nissaba significa ‘cevada’ (CDA, s.v.).
  4. Shakkan é o senhor dos animais, deus do gado, que se representava nu em pelo. A expressão lubuti labiš kima Šakkan (vestindo veste como a de Shakkan) indica que Enkídu se cobre não mais que com os pelos do próprio corpo, como não poderia deixar de acontecer no período em que vive na companhia dos animais, sem conhecer gente nem cidade. Ainda que alguns comentadores estranhem a referência a “veste”, aventando a possibilidade de que ele trouxesse algum tipo de vestimenta, parece claro que se encontra efetivamente nu se atentarmos para o fato de que, mais à frente, será ele vestido, pela primeira vez, pela meretriz: cf. 2, 34, ilbaš libšam, “vestiu uma veste” (cf. Tigay, The evolution of the Gilgamesh epic, p. 200). Ao traduzir a expressão por “pelado em pelo”, pretendo também manter algo da aliteração a que a ocorrência de objeto direto interno dá margem em lubuti labiš (cf. labāsu labiš, ‘vestir uma veste’).
  5. Shámhat é uma personagem-chave no relato. Não tem razão Bailey, Initiation and primal woman in Gilgamesh and Genesis 2-3, p. 140, quando afirma que se trata de personagem anônima e, portanto, mal delineada, tendo em vista que šamhatum significa ‘prostituta’ (trata-se de adjetivo com o sentido de ‘voluptuoso’, termo derivado de šamhu(m), ‘luxuriante’, ‘viçoso’, quando aplicado a vegetação e pessoas, do verbo šamāhu(m), ‘crescer’, ‘florescer’, ‘atingir uma extraordinária beleza e estatura’). Que Shámhat não seja um nome próprio constituiu um entendimento outrora comum: assim Sanmartín, Epopeya de Gilgameš, p. 36-38, o traduz como “moça”. Ora, nos versos 162 e 167, a partir dos quais este é reconstituído, lê-se harimtu fšam-hat, o primeiro termo tendo já o significado de ‘prostituta do templo’ (derivado de harāmu, ‘separar’, no sentido de que se trata de mulheres que viviam isoladas num recinto determinado do templo), não sendo razoável supor que o segundo signifique a mesma coisa em vez de tratar-se de um nome próprio que evidentemente joga com os sentidos derivados de šamāhu (m), apontando para o viço e a voluptuosidade da mulher, considerada, conforme George, como “a prostituta por excelência”. Saliente-se que esse nome aparece como próprio em outros documentos (cf. George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 148). A propósito da nomeação de Shámhat por Enkídu como um importante recurso narratológico, ver Worthington, On names and artistic unity in the standard version of the Babylonian Gilgamesh Epic, p. 406-409. Observe-se que desde a descrição feita por Heródoto da prostituição nos templos da Babilônia (cf. Histórias 1, 199), muito se tem especulado sobre o estatuto dessas hierodulas. Pelo que hoje se sabe, parece que as harimtu constituíam uma das classes de mulheres ligadas aos templos (cf. Lerner, The origin of prostitution in ancient Mesopotamia, p. 244, provavelmente a mais baixa dentre todas, constituída por “filhas de escravas” que ficavam “sob a supervisão de um funcionário de nível inferior”). O texto não diz nada sobre a condição de Shámhat, mas George anota que, “enquanto um centro do culto a Ishtar, deusa do amor sexual, Úruk era uma cidade bem conhecida pelo número e beleza de suas prostitutas”, muitas delas empregadas no templo de Nínsun e da própria Ishtar; uma vez que ela conduz Enkídu ao templo de Ánu e desta última deusa, é de supor-se que estivesse ligada justamente a ele (George, The Babylonian Gilgamesh Epic, p. 148).