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aproximava-se mais da pronúncia local do que as mencionadas fórmas. O M e N, insulados, nada representam. Por isso, bem avisados andam os que escrevem Pungo Andongo, em vêz da fórma bárbara, usada por alguns africanistas modernos, Pungo N'Dongo.
Outra dificuldade occorre ainda, a respeito de pronúncia, ao diccionarista, quando trata de palavras compostas, na technologia scientífica. Primitivamente, a desinência do primeiro elemento dessas palavras é aberta e átona: pàthògenia, hippòdromia, geòdynâmica, neò-céltico, photòsphera, lithòspermo, lithòclase, histògenia, hypèrácido, intèrplanetário, mònòcéphalo, etc. Com o andar do tempo e com a vulgarização do termo scientífico, todas as vogaes secundárias se subordinam á vogal tónica, e temos typographia, morphologia, pathologia, histologia, photographia, geographia, neologismo, intermittente, hyperbólico, monographia, etc., que ninguém pronuncía hypèrbólico, intèrmittente, gèògraphia, phòtògraphia, nèòlogismo, històlogia, pàthòlogia, typògraphia, mònògraphia... ¿Onde acaba o carácter erudito e primitivo da palavra, e onde começa a sua feição vulgar ou popular? Ninguém marcou ainda a linha divisória; e o que hoje é erudito é amanhan popular.
E daqui se infere a difficuldade, se não a desnecessidade, de indicar a pronúncia das vogaes secundárias na maioria das palavras. O ponto capital é a determinação da vogal tónica.
Além do que, a pronúncia do português no Brasil offerece notáveis divergências da nossa pronúncia e, em muitos casos, será diffícil justificar o direito com que pretendamos dar lições prosódicas aos nossos irmãos transatlânticos. Dentro do próprio Brasil, do norte ao sul, há sensíveis divergências na modulação das vogaes átonas. Assim, ao norte, como em Portugal, o o de botar é surdo, pronunciando-se bu-tar; e ao sul é aberto, pronunciando-se bò-tar.
Reduzida, na grande maioria dos casos, a questão da pronúncia á determinação da vogal tónica, naturalmente nos abeiramos do problema da accentuação gráphica.[1]

  1. A propósito da orthographia portuguesa, deu-se, entre a 1.^a e 2.^a edição do presente Diccionário, um acontecimento memorável, que me cumpre registar neste ponto.
    Em Portaria do Govêrno, de 15 de Fevereiro de 1911, foi nomeada uma Commissão, encarregada de fixar as bases da orthographia que deve sêr adoptada nas escolas e nos documentos e publicações officiaes. Essa Commissão era composta de D. Carolina Michaëlis, Gonçalves Viana, Candido de Figueiredo, Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos, e foram-lhe depois aggregados Ribeiro de Vasconcelos, Gonçalves Guimarães, Epifânio Dias, Júlio Moreira, J. J. Nunes e Borges Graínha.
    Essa Commissão, em 23 de Agosto do mesmo anno, apresentou o seu relatório, firmado pelos vogaes residentes em Lisbòa, com prévia audiência e assenso dos vogaes ausentes; e dias depois, em Portaria de 1 de Setembro, mandava o Govêrno que a reforma ortográphica, proposta naquelle relatório, fôsse adoptada nas escolas e nos documentos e publicações officiaes.
    Eis a súmmula desta reforma, ou a sýnthese dos seus pontos capitaes:
    1.º — Não se duplicam consoantes. — Portanto, beleza, aprovar, imediato, abade, Melo, Matos, Mota...
    2.º — Simplificam-se e substituem-se os grupos ph, th, rh, ch (com o valor de k). — Portanto, filosofia, teatro, reumatismo, quimera, química, corografia.
    3.º — Não se emprega y, nem k, nem w. — Portanto, lira, martírio, calendário, Venceslau... Exceptuam-se só os vocábulos derivados de nomes próprios estrangeiros, como byroniano, kantismo, wiclefitas...
    4.º — Dentro de vocábulos não se escreve h. Portanto, inerente, inibir, inábil, compreender, inumano...
    5.º — Os ditongos oraes, ae, áo, éo, óe, substituem-se por ai, au, éu, ói. — Portanto, pai, pais, jornais, marau, chapéu, herói, anzóis...
    6.º — Evitam-se consoantes inúteis. — Portanto, escritura, escritor, escultura, distrito, salmo, luta...
    Exceptuam-se os casos, em que a consoante, embora se não pronuncie, tem a utilidade de significar que é aberta a vogal que a precede, como em exceptuar, rectidão, redacção, direcção, actor, etc., e nos vocábulos das mesmas familias: excepto, recto, redactor, directo, actuar...
    7.º — O pronome pessoal enclítico lo liga-se aos verbos por um traço. — Portanto, tu faze-lo e eu não posso fazê-lo; louvá-lo; ouvimo-lo...
    8.º — O emprêgo do s e do z é regulado pela etimologia e pelas tradições da língua. — Portanto, português, francês, cortês, freguês, defesa, empresa; e ao mesmo tempo, natureza, beleza, civilizar, realizar, organizar, vez, talvez... Em caso de dúvida, há ainda o recurso dos bons diccionários e vocabulários, organizados depois que é conhecida entre nós a sciência da linguagem, isto é, nos últimos vinte ou trinta annos.
    9.º — Escreve-se igreja, idade, igual.
    10.º — Acentuam-se graficamente todos os vocábulos esdrúxulos. — Portanto, pálido, túmulo, crisântemo, lêvedo, hipódromo, velódromo, diário, África... Acentuam-se os homógrafos, não homofónicos, pois há séde e sêde, govérno e govêrno, dúvida e duvida, etc. O acento grave pertence ás vogais abertas, não tónicas. Portanto, còrado, prègador, pègada... E também se póde empregar para desfazer ditongo, como em proìbir, miùdamente; e para mostrar que o u se pronuncia depois de g ou q, como em agùentar, freqùente... (quando convenha representar a pronúncia, especialmente no ensino primário).
    Esta reforma entrou immediatamente em execução, e, felizmente, ainda fóra dos domínios officiaes, está sendo espontanea, e, mais ou menos rigorosamente, praticada por numerosos publicistas e jornalistas.
    Para a sua melhor execução, publicaram-se dois vocabulários, o de Gonçalves Viana e o de Xavier Rodrigues, sob os auspícios da Commissão reformadora.
    Como subscritor da reforma e velho propangandista da simplificação orthográphica, recebi conselhos e pedidos, para que a nova edição do presente diccionário se subordinasse inteiramente a essa reforma, na disposição alphabética dos vocábulos e na matéria do texto.
    Bem intencionadas eram decerto essas solicitações; e, se a presente edição se fizesse daqui a dez ou vinte annos, é natural que os factos me levassem a acceitá-las e a deferí-las, visto que, segundo creio, dentro de alguns annos, a simplificação orthográphica, sem demasias irritantes e sem radicalismos nocívos, será naturalmente dominante em Portugal e no Brasil, e os diccionários de então deverão subordinar-se aos factos.
    Mas os factos de hoje aconselham outra coisa. Como se não trata de um simples vocabulário de propaganda, mas de um diccionário da língua, a cujo autor impende o estricto dever de representar a actualidade gráphica do idioma, imprudência sería tomar como enraizada desde já, e geralmente, a simplificação orthográphica, e fazer de conta que não existiram as graphias de Herculano, Castilho e Latino, e ainda as da maioria dos que, no momento actual, escrevem português, aquém e além do Atlântico.
    Um diccionário tem de sêr o registo dos factos da língua; e os factos são que a chamada até agora orthographia usual é por ora aceita, e sê-lo-á, por algum tempo, pela grande maioria dos que escrevem. Bastará ponderar-se que, embora a Academia Brasileira haja preconizado e praticado já uma reforma, que essencialmente não differe da portuguesa, a maioria dos milhões de indivíduos que na América falam a nossa lingua, ainda não praticam a simplificação adoptada pelo Govêrno português e pela Academia Brasileira.
    Ora, um diccionário é livro para todos, e tem de subordinar-se aos factos mais geraes da língua; pelo que, tenho de manter a orthographia mais usual, á parte as fórmas erróneas, que procuro corrigir. Mas, como também é um facto a adopção official da orthographia simplificada e a adopção della, por parte de muitos e autorizados publicístas, registo a par as fórmas usuaes e as fórmas simplificadas, sempre que o vocábulo é susceptível de variantes legítimas: philósopho e filósofo, lyra e lira, theatro e teatro, Chímica e Química, inherente e inerente, etc.
    Assim, encontra aqui o leitor as fórmas mais usuaes entre os escritores modernos; e o partidário menos perito da simplificação orthographica encontra, a par daquellas fórmas, as fórmas simplificadas, quando as usuaes possam sêr substituidas por fórmas simples.
    De maneira que, sob êste ponto de vista, a obra deverá satisfazer os etymologistas, os usualistas, os simplificacionistas e todos os que queiram vêr registadas as graphias que mais lhes aprazam, sob a condição de serem legítimas..

    (Nota desta nova edição).