O pavão, que nunca tinha reparado nos proprios pés, abaixou-se e contemplou-os longamente. E, desapontado, foi andando o seu caminho sem replicar coisa nenhuma.


Tinha razão o corvo: não ha beleza sem senão.



— Que quer dizer “senão”, vóvó?

— Aqui nesta frase quer dizer defeito.

— E por que senão é defeito?

— Porque o modo de botar um defeito nalguem ou nalguma coisa era sempre por meio do “senão” — e por fim essa palavra ficou sinonima de defeito. “Fulana seria muito bonitinha, senão fosse aquele nariz de coruja”. “Este doce estaria otimo, senão fosse estar doce demais” — e assim por diante.

— Mas é verdade, vóvó, que não ha mesmo beleza sem senão?

— A fabula diz que não ha e as fabulas sabem...

— São sabidissimas, sim! confirmou Emilia. E a dos filhos da coruja é a mais sabida de todas. Quem é que andou inventando as fabulas, dona Benta? Foram os animais mesmo?

Dona Benta riu-se.

— Não, Emilia. Quem inventou a fabula foi o povo e os escritores as foram aperfeiçoando. A sabedoria que ha nas fabulas é a mesma sabedoria do povo, adquirida á força de experiencias.

— Mas não haverá mesmo beleza sem senão, vóvó? insistiu a menina.

— Ha, sim, minha filha. Para mim, por exemplo, você é uma belezinha sem senão.

Emilia torceu o nariz. Depois prometeu escrever uma fabula com o titulo: “Os Netos da Coruja”.

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