que os seus livros dão aos delicados que prematuramente adivinham a injustiça e a brutalidade da vida?
O que faz o encanto da meninice não é que essa idade seja melhor ou pior que as outras. O que a faz encantadora e boa é que, durante esse período da existência, nossa capacidade de sonho é maior e mais força temos em identificar os nossos sonhos com a nossa vida. Penso, hoje, que o meu colega Ezequiel tinha sempre no bolso um canivete, no pressuposto de, se viesse a cair em uma ilha deserta, possuir à mão aquele instrumento indispensável para o imediato arranjo de sua vida; e aquele meu outro colega Sanches andava sempre com uma nota de dez tostões, para, no caso de arranjar a "sua" namorada, ter logo em seu alcance o dinheiro com que lhe comprasse um ramilhete.
Era, porém, falar ao Ezequiel em Heitor Servadac, e logo ele se punha entusiasmado e contava toda a novela do mestre de Nantes. Quando acabava, tentava então outra; mas os colegas fugiam um a um, deixavam-no só com o seu Jules Verne, para irem fumar um cigarro às escondidas.
Então, ele procurava o mais afastado dos bancos do recreio, e deixava-se ficar lá, só, imaginando, talvez, futuras viagens que havia de fazer, para repassar as aventuras de Roberto Grant, de Hatteras, de Passepartout, de Keraban, de Miguel Strogoff, de Cesar Cascavel, de Philéas Fogg e mesmo daquele curioso doutor Lindenbrock, que entra pela cratera extinta de Sueffels, na desolada Islândia, e vem à superfície da Terra, num ascensor de lavas, que o Estrômboli vomita nas terras risonhas que o Mediterrâneo afaga...
Saímos do internato quase ao mesmo tempo e, durante algum, ainda nos vimos; mas, bem depressa, perdemo-nos de vista.
Passaram-se anos e eu já o havia de todo esquecido, quando, no ano passado, vim a encontrá-lo em circunstâncias bem singulares.
Foi em um domingo. Tomei um bonde da Jardim, aí, na avenida, para visitar um amigo e, com ele, jantar em família.