HISTORIAS E SONHOS
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Um instante, elle pensou em continuar uma daquellas cantigas, em completal-a; e a aria veiu-lhe inteira, ao ouvido, provocando o antigo professor de musica a fazer parar o «Chuveiro de Ouro», afim de ensinar-lhe, aos cantores, o que a imaginação lhe havia trazido á cabeça naquelle momento.

Arrependeu-se que tivesse feito gostar daquella barulhada; porém, o amador de musica, vencia o homem desgostoso. Elle queria que aquella gente entoasse um hymno, uma cantiga, um canto com qualquer nome, mas que tivesse regra e belleza. Mas — logo imaginou — para que? Corresponderia a musica mais ou menos artistica aos pensamentos intimos delles? Seria mesmo a expansão dos seus sonhos, fantasias e dôres?

E, devagar, se foi indo pela rua em fóra, cobrindo de sympathia toda a puerilidade apparente daquelles esgares e berros, que bem sentia profundos e proprios daquellas creaturas grosseiras e de raças tão varias, mas que encontravam naquelle vozeiro barbaro e ensurdecedor meio de fazer porejar os seus soffrimentos de raça e de individuo e exprimir tambem as suas ancias de felicidade.

Encaminhou-se directo para a casa. Estava fechada; mas havia luzes na sala principal, onde tocavam e dansavam.

Atravessou o pequeno jardim, ouvindo o piano. Era sua mulher quem tocava; elle o advinhava pelo seu velouté, pela maneira de ferir as notas, muito docemente, sem deixar quasi perceber a impulsão que os dedos levavam. Como ella tocava aquelle tango! Que paixão punha naquella musica inferior!

Lembrou-se então dos cordões, dos ranchos, das suas cantillenas ingenuas e barbaras, daquelle rythmo especial a ella que tambem perturbava sua mulher e abrazava sua filha. Porque caminho lhes tinha chegado ao sangue e á carne aquelle gosto, aquelle pendôr por taes musicas? Como havia correlação entre ellas e as almas daquellas duas mulheres?

Não sabia ao certo; mas viu em toda a sociedade complicados movimentos de trocas e influencias — trocas de idéas