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MEMORIAS POSTHUMAS DE BRAZ CUBAS

dos seres e das cousas. Tal era o expectaculo, acerbo e curioso expectaculo. A historia do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a sciencia, porque a sciencia é mais lenta e a imaginação mais vaga, emquanto que o que eu alli via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevel-a seria preciso fixar o relampago. Os seculos desfilavam n’um turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delirio são outros, eu via tudo o que passava deante de mim, — flagellos e delicias, — desde essa cousa que se chama gloria até essa outra que se chama miseria, e via o amor multiplicando a miseria, e via a miseria aggravando a debilidade. Ahi vinham a cobiça que devora, a colera que inflamma, a inveja que baba, e a enxada e a penna, humidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancholia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruil-o, como um farrapo. Eram as fórmas varias de um mal, que ora mordia a viscera, ora mordia o pensamento, e passeiava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da especie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia á indifferença, que era um somno sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagellado e rebelde, corria diante da fatalidade das cousas, atraz de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpavel, outro de improvavel, outro de invisivel, cosidos todos a ponto precario, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a chimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se