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Sérgio Branco

Carlos Affonso Pereira de Souza entende a conexão entre os temas a partir de duas perspectivas. Na primeira, assim como apontado por Maria Celina Bodin de Moraes, os direitos autorais se relacionariam à ideia de liberdade, em função da liberdade de criação intelectual, tutelada pelo ordenamento jurídico. Em uma segunda concepção, os direitos morais do autor poderiam ser protegidos a partir da tutela da integridade moral da pessoa humana[1]. Interessa-nos sobretudo, pelo menos neste momento, a primeira abordagem.

Conforme visto anteriormente, as obras intelectuais são criadas tendo por base múltiplas influências advindas de obras alheias. A garantia à liberdade de criação intelectual exige, portanto, o acesso a obras alheias, pois é somente a partir da formação cultural do indivíduo que este poderá criar suas próprias obras.

Nesse cenário, se nos for possível a expressão por meio de uma metáfora, o direito autoral funciona como represa, e o domínio público, como estuário. Enquanto protegidas pelos direitos autorais patrimoniais, o acesso às obras produzidas se dará nos limites da lei ou na medida em que seu acesso seja autorizado pelo titular dos direitos. Uma vez que a obra seja inserida no domínio público, seu acesso será livre, bem como sua utilização.

A efetividade do direito de liberdade de criação, tido como postulado da dignidade da pessoa humana, será alcançada por dois caminhos: o do acesso e o da liberdade de expressão. O primeiro é pressuposto do segundo. Apenas por meio do acesso às obras intelectuais alheias é que os autores poderão se expressar. Incluímos na classe dos autores todos aqueles que desejam criar obras intelectuais, mas sobretudo os alunos de qualquer instituição de ensino, pública ou privada, e de qualquer nível.

Vê-se, assim, que o acesso às obras intelectuais – bem como a consequente liberdade de expressão – acaba por garantir ainda outros direitos fundamentais, como o direito à educação, à cultura e ao lazer, sem se esquecer da livre iniciativa, dentro dos limites autorizados pela lei[2].

Finalmente, cabe lembrar que as justificativas da importância de um direito autoral funcionalizado e de um domínio público amplo não se extinguem aqui. Sendo a liberdade de expressão uma evidente manifestação do direito de personalidade, não pode ser limitada pelas hipóteses de previsão legal. Como já alertou Pietro Perlingieri, “[n]enhuma previsão especial poderia ser exaustiva porque deixaria de fora algumas

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  1. SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. O Abuso do Direito Autoral. Tese apresentada ao programa de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009. “A comprovação de que a disciplina do direito autoral se insere no debate sobre a dignidade da pessoa humana pode ser percebida pela localização dos princípios jurídicos da integridade moral e da liberdade como postulados da dignidade da pessoa humana. Dentre as manifestações do princípio da liberdade estaria, evidentemente, a liberdade de criação intelectual, recebendo do ordenamento jurídico a devida tutela. Por outro lado, a integridade moral da pessoa também pode levar em conta a vinculação da personalidade do autor com a obra criada, sendo assim a tutela dos direitos morais uma forma de garantir essa integridade moral”.
  2. A livre iniciativa é garantia constitucional, prevista tanto no art. 1º, IV, quanto no art. 170 da CF/88.