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O INFERNO

por que os não impede de ser scelerados; e, de mais a mais concorre, umas vezes, a precipital-os no crime, outras a empedernil-os na perversidade.

Falta agora considerar o inferno, não em referencia á terra, mas pelo que elle é em si, qual os padres, doutores e mysticos o pintaram, isto é, nas suas relações com Deus, com os predestinados e com os reprobos. Mas, antes d'isso, cumpre-nos dizer alguma coisa das opiniões de Platão ácerca da justiça divina e do inferno. Será isto, a um tempo, entrar no assumpto, e responder aos theologos que, á mingua de razões, invocam de vontade, n'esta materia, a auctoridade de Ovidio, de Horacio, de Lucrecio, de Virgilio, de Hesiodo, de Orpheo, e d'outros escriptores de costumes sobre modo extravagantes que, a tal respeito, repetiram as idêas do antigo paganismo e nada mais.

A opinião de Platão, que elles mais acintemente allegam, deriva da mesma fonte; mas, alumiada pela indole e pura vida d'aquelle philosopho, ostenta-se mais respeitavel e seductora.

É mister, no dizer de Platão, que um castigo seja razoavel para ser justo; e para que seja razoavel, uma de duas clausulas é precisa: ou que o castigo aproveite ao castigado, ou ás testemunhas d'elle.

Partindo d'este principio, Platão não prodigalisa, á feição dos nossos theologos, as penas eternas, por quanto, a seu parecer, falta n'ellas a grande virtude das penas temporarias. São estas, em verdade, dobradamente prestadias, pois que ao mesmo tempo corrigem