54
O INFERNO

Não lhe digaes: arde a peste na cidade; á vossa porta está a maca. Ha muito que ella concebeu tedio do mundo; não lhes leveis novas d'elle, que perturbarieis o seu socego. Quanto menos ella se inquieta d'essas transitorias miserias, mais os theologos a admiram. N'isso mesmo, — crêl-o-eis? — é que está, segundo elles, a sua superioridade sobre a irmã da caridade, cujo coração virginal arfa como coração de mãe ao grito da criancinha[1].

A carmelita não pensa, nem tem que pensar senão em sua propria salvação, e tal pensar é um manancial das commoções que unicamente lhe são permittidas. Bem que ella viva dez, vinte, cincoenta annos sob o

  1. Elles comparam as irmãs da caridade áquella mulher de Bethania chamada Martha, a qual, vendo entrar Jesus em sua casa, se deu pressa em lhe servir a ceia; e comparam a carmelita á Magdalena que, em vez de ajudar Martha nas suas diligencias, lavava e perfumava os pés do divino hospede, enxugando-os com os seus cabellos. Diz porém o Evangelho que Jesus estava á meza quando Magdalena lhe abraçou e ungiu de lagrimas os pés. Não ha palavra na relação dos apostolos, d'onde possamos colher que é melhor orar pelos famintos do que alimental-os. O contrario é que lá se diz; e quando Jesus nos faz assistir de antemão ao julgamento do dia final, exclama: tive fome, e vós me alimentastes; tive frio, e me vestistes. A scena de Bethania, e o louvor dado a Magdalena, não desluz o claro ensino do Evangelho. Este episodio prova sómente que não basta alimentar os pobres, mas que tambem é mister instruil-os como filhos de Deus, os melhores amigos de Jesus, e sua visivel imagem na terra: o que rigorosamente fazem as irmãs da caridade, e não fazem as contemplativas.