deixar comer tudo: não póde ser que a natureza não faça em vós o que a
razão não póde: o caso he este, dir-vo-lo-hei; porém he necessario que
primeiro vos alimpeis como marmelo, e que ajunteis para hum canto da casa todos
esses maos pensamentos; porque segundo andais mal avinhado, damnareis tudo
aquillo que agora lançarem em vós. Ja vos dei conta da pouca que tenho com
toda a outra cousa que não he servir a Senhora Dionysa; e postoque a
desigualdade dos estados o não consinta, eu não pretendo della mais que o
não pretender della nada, porque o que lhe quero, comsigo mesmo se paga; que
este meu amor he como a ave Phenix, que de si só nasce, e não de outro nenhum
interesse.
Bem praticado está isso; mas dias ha que eu não creio em sonhos.
Porque?
Eu vo-lo direi: porque todos vós-outros os que amais pela passiva, dizeis
que o amor fino como melão, não ha de querer mais de sua dama que amá-la; e
virá logo o vosso Petrarca, e o vosso Pietro Bembo, atoado a trezentos
Platões, mais çafado que as luvas de hum pagem d’arte, mostrando razões
verisimeis e apparentes, para não quererdes mais de vossa dama que vê-la; e
ao mais até fallar com ella. Pois inda achareis outros esquadrinhadores
d’amor, mais especulativos, que defenderão a justa por não emprenhar o
desejo; e eu (faço-vos voto solemne) se a qualquer