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SONETOS.
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CCIV.

Nos braços de hum Sylvano adormecendo
Se estava aquella Nympha qu'eu adoro,
Pagando com a boca o doce foro,
Com que os meus olhos foi escurecendo.

Oh bella Venus! porqu'estás soffrendo
Que a maior formosura do teu côro
Em hum poder tão vil perca o decoro
Que o merito maior lhe está devendo?

Eu levarei daqui por presupposto
Desta nova estranheza que fizeste,
Que em ti não póde haver cousa segura.

Que, pois o claro lume, o bello rosto
Áquelle monstro tão disforme déste,
Não creio qu'haja Amor, senão Ventura.



CCV.

Quem diz que Amor he falso, ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel, ou rigoroso,

Amor he brando, he doce, e he piedoso:
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos deoses odioso.

Se males faz Amor, em mi se vem;
Em mi mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quiz mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são d'Amor;
Todos estes seus males são hum bem,
Qu'eu por todo outro bem não trocaria.