Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar:
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nella está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente póde descansar,
Pois com elle tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semidea,
Que como o accidente em seu sojeito,
Assi com a alma minha se confórma;
Está no pensamento como idea;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a materia simples busca a fórma.
Passo por meus trabalhos tão isento
De sentimento grande nem pequeno,
Que só por a vontade com que peno
Me fica Amor devendo mais tormento.
Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
Temperando a triaga co'o veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o soffrimento.
Porém se esta fineza o Amor sente
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.
Mas se me vê co'os males tão contente,
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que quanto mais me paga, mais me deve.