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SONETOS
XXX.

Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as pennas ordenando;
O verso sem medida, alegre e brando,
Despedindo no rustico raminho.

O cruel caçador, que do caminho
Se vem callado e manso desviando,
Com prompta vista a setta endireitando,
Lhe dá no Estygio Lago eterno ninho.

Desta arte o coração, que livre andava,
(Postoque ja de longe destinado)
Onde menos temia, foi ferido.

Porque o frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.



XXXI.

Pede o desejo, Dama, que vos veja:
Não entende o que pede; está enganado.
He este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tẽe, não sabe o que deseja.

Não ha cousa, a qüal natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Só porque nunca falte onde sobeja.

Mas este puro affecto em mim se dana:
Que, como a grave pedra tẽe por arte
O centro desejar da natureza;

Assi meu pensamento por a parte,
Que vai tomar de mi, terreste e humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.