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OS MAIAS

— Vamos embora, exclamou Ega. Isto está lugubre!...

Mas Carlos, pallido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Ahi, que era a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente accumulados na confusão das artes e dos seculos, como n’um armazem de bric-à-brac, todos os moveis ricos da Toca. Ao fundo, tapando o fogão, dominando tudo na sua magestade architectural, erguia-se o famoso armario do tempo da Liga Hanseatica, com os seus Martes armados, as portas lavradas, os quatro Evangelistas prégando aos cantos, envoltos n’essas roupagens violentas que um vento de prophecia parece agitar. E Carlos immediatamente descobriu um desastre na cornija, nos dois faunos que entre trophéos agricolas tocavam ao desafio. Um partira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta bucolica...

— Que brutos! exclamou elle furioso, ferido no seu amor da coisa d’arte. Um movel d’estes!...

Trepou a uma cadeira para examinar os estragos. E Ega, no emtanto, errava entre os outros moveis, cofres nupciaes, contadores hespanhoes, bufetes da Renascença italiana, recordando a alegre casa dos Olivaes que tinham ornado, as bellas noites de cavaco, os jantares, os foguetes atirados em honra de Leonidas... Como tudo passára! De repente deu com o pé n’uma caixa de chapéo sem tampa, atulhada de coisas velhas — um véo, luvas desirmanadas, uma meia de sêda, fitas, flôres artificiaes.