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VIDA OCIOSA

I

Atravesso um longo trecho do povoado, que ainda dorme na penumbra. A orla do horizonte empallidece. Cantos roucos de gallos erguem-se de todos os quintaes. Arvoredos somnolentos debruçam-se sobre velhas cercas, relentados, com um fulgor de diamante negro em cada folha. A aragem corta e ligeira névoa adensa-se nas extremidades da rua. E sorvendo até o imo dos pulmões o ar humido e frio, sinto meu sangue reagir alvoroçadamente, dando-me uma doce impressão de bem estar.

A estrada. Um resto da melancolia da noite ainda se exprime no cricrilar transnoitado dos ultimos grillos; em compensação, o hesitante rangido com que as primeiras cigarras ensaiam a musica do dia, o crescendo de pios e regorgios na grande matta do outro lado do rio, annunciam o dia que alvorece.

Essa hora exerce sobre mim effeitos contradictorios. A's vezes acabrunha-me, intumesce-me o coração de velhas recordações imprecisas; ha em minha alma o renascer de sensações antigas, e que de longinquas jaziam em lethargo, como mortas. Para despertal-as basta um quasi nada: um reflexo alvacento num alagadiço, um vốo ondulante de passaro, o sussurro da viração nas folhagens... De que me lembro então? A que scenas deslembradas de minha vida se prendem essas fugitivas sensações? Sabe-o apenas o subconsciente. Nesses instantes a alma tumultua-me; dentro de mim alguem debruça-se á janella do passado, e alonga olhos nostalgicos para o que quer que seja que não distingo. Sim!