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nuntius antiquus

Belo Horizonte, v. X, n. 2, jul.-dez. 2014
ISSN: 2179-7064 (impresso) - 1983-3636 (online)

Pelos sem corte por todo o corpo,
[106] Cabelos arrumados como de mulher:
Os tufos do cabelo, exuberantes como Níssaba,*
[108] Não conhece ele gente nem pátria,*


Enkídu aparece como companheiro de Gilgámesh desde os textos em sumério, em que se registram duas tradições divergentes: numa ele é chamado de “servo” de Gilgámesh (este sendo considerado o lugal, isto é, o rei de Enkídu); noutra, especialmente concernente à morte de Gilgámesh, ele é referido como um amigo precioso. Enkídu não aparece fora do ciclo de Gilgámesh, a não ser num encantamento babilônico antigo (cf. GBGE, p. 138-144). Reconhece-se que um traço distintivo do poema de Sîn-lēqi-unninni (tão importante quanto a exploração da temática da mortalidade) é o papel nele atribuído a Enkídu como efetivo companheiro e igual de Gilgámesh (cf. Sasson, 1972, p. 265-266).

O termo qurādu(m), “guerreiro”, “herói” (derivado de qarādu, “ser belicoso”), com que se qualifica Enkídu neste verso, é o mesmo que aparece nos v. 77 e 92 acima. Este é o traço por excelência de Enkídu, aquele que torna possível que ele cumpra a função que preside a sua criação, expressa nos v. 97-98: “Que um coração tempestuoso se lhe oponha [a Gilgámesh],/ Rivalizem entre si e Úruk fique em paz”.

[Verso 104] A expressão ilitti qulti, que traduzi como “filho do silêncio”, tem provocado dúvidas entre os intérpretes no que concerne a seu significado. Parece-me que a opinião de George é a mais adequada: o modo como nasceu Enkídu torna-o ímpar, pois, enquanto os demais homens foram dados à luz no meio dos gritos e gemidos da mãe, sua entrada no mundo foi cercada de silêncio (GBGE, p. 789). Registre-se que há uma variante deste hemistíquio assim restaurada: i-lit!-tu4 mu-t[um?, o termo mūtu(m) significando “morte” (filho da morte).

No segundo hemistíquio lê-se kișir dninurta (força de Ninurta). Kișrum significa “nó”, “amarração” com junco, com corda; “concentração”, “grupo”, “aglomeração”, “aglomerado”; aplicado a montanhas (kișrāt šadî, “montanha de pedras”) tem o sentido de “rocha”, “pedra”; determinado por um nome divino, kișir significa “fortalecido”, “sustentado” por um deus (cf. kașāru(m), “amarrar”, “dar um nó”, “juntar”, “reunir”). Como está em causa o deus Ninurta, a expressão indica que é ele quem dá consistência e sustentação a Enkídu. Ninurta era associado a grandes feitos guerreiros, especialmente em combates singulares contra um rival valoroso, como caberá também a Enkídu enfrentar Gilgámesh. Minha tradução por “rocha de Ninurta” leva em conta a nova ocorrência de kișrum, aplicado pelo caçador a Enkídu, no v. 125.

[Verso 107] Recorde-se que a mesma expressão descreve Gilgámesh no v. 60 supra.


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