Parnaso mariano (1890)/Poesias/XVII: Anunciação

XVII


ANNUNCIAÇÃO


II
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Na culpa entrou mulher,
Assi convinha no remedio ser,

III

Virgem sagrada e pura
Que a natureza esmalta,
E tanto atraz de si tudo deixou,
Perfeita creatura,
Posto em parte tão alta
Que nunca culpa algũ a lá chegou,
Comnosco conversou
No mundo por seu meio
O Verbo divinal;
Por nós feito mortal.
Co’a cruz ás costas, de tão longe veio,
E com taes armas sós
Taes imigos venceu só para nós.

IV

Foi o primeiro Adão
De limo virgem feito,
Inspirando-lhe alli divino sprito:
Assim estava em razão
Que est’outro mais perfeito
De ventre virginal saia bemdicto,
Isento do delicto
Em que a serpente antiga
A todos involvera:
O céo, que Eva perdera,
Quem nol-o abriu ficou fóra de briga,
Foi-lhe hoje entregue a chave,
Foi-lhe o nome mudado de Eva em Ave.

V

O Embaixador divino
Com tal acatamento
Propoz como o menor ante o maior;
A Virgem indo a tino
Regia o pensamento,
Deixando nas mãos tudo do Senhor,
Divino resplendor,
Divina claridade,
Em noite escura alli tão claro dia,
Quanto em gloria subia,
Tanto descia mais em humildade,
Temia e confiava,
Cuidando ora no céo, ora onde estava.

VI

Contemplava cada hora
Que havia de parir
Uma Virgem, signal dado na lei.
Sempre diz: ah quem fora
Digna de a servir,
Virgem e madre de um tão alto rei!
Peccador, que direi
Em mysterios tão altos,
Filho no céo sem mãe?
Filho em terra sem pae?
A taes escuridões taes sobresaltos:
Este pó, terra indigna,
Quando cuida que atina, desatina.

VII

Se á tua grande, mas pobre vontade
Fora dada igual graça,
Sahir poderas, canção minha, á praça.

Sá de Miranda.