Pensar é preciso/I/Mito e realidade

“O mito é o nada que é tudo” (Fernando Pessoa)


A pré-história da civilização ocidental pode ser entendida graças às sucessivas descobertas arqueológicas realizadas, a partir da segunda metade do séc. XIX d.C. Em Creta e outras ilhas do mar egeu, jônico e mediterrâneo, em Micenas e outras cidades da península grega, na antiga Ílios (Tróia) e em outros sítios da costa asiática. Os estudiosos remontam as origens da civilização indo-européia até o ano de 2500 a.C. A concepção religiosa desses povos primitivos talvez esteja relacionada com um culto fetichista pela crença em forças sobrenaturais alojadas em objetos materiais. Assim, adoravam-se animais, vegetais ou pedras, acreditando serem animados por espíritos que, como se fossem talismãs, tinham o poder de proteger os crentes contra tempestades ou doenças.

Por vezes, pela imaginação do homem primitivo, formas animais adquiriam feições humanas, dando origem a seres híbridos, como, por exemplo, o Minotauro, monstro com cabeça de touro e corpo de homem, nascido de uma relação sexual da esposa do rei Minos com um touro enviado pelo deus Netuno. Pela contínua evolução da mente humana, passando para um estágio mais avançado, chegamos a uma concepção antropomórfica da divindade. Entramos, assim, no riquíssimo mundo da mitologia grega, conforme descrições em poemas didáticos, épicos, líricos e dramáticos, que remontam ao séc. VIII.

O termo grego mythos significa uma “história” fantástica, de origem anônima e coletiva, inventada para tentar explicar fenômenos naturais ou comportamentos existenciais, anteriormente ao avanço da filosofia e das ciências. Assim, por exemplo, o povo grego primitivo, não conhecendo a natureza do raio, imaginava ser uma seta incandescente de Júpiter, fabricada por Vulcano, o deus do fogo, pela qual o pai dos deuses punia os homens faltosos. A narrativa mítica apresenta aspectos divinos de acordo com concepções antropomórficas da natureza cósmica e da vida humana. Contrariamente ao que nos ensinam as diferentes religiões, não é Deus que cria os homens, mas são estes que criam os deuses a sua imagem e semelhança. Por exemplo, na África, a configuração da Virgem Maria é de cor preta, de lábios grossos e de seios abundantes.

As divindades são apenas projeções do inconsciente coletivo, que inventa figuras transcendentais para expressar plasticamente seus desejos e seus temores. Mas o mito, apesar de inverossímil, não deixa de ser uma “crença-verdade”. O estudioso Mircea Eliade, na famosa obra Mito e Realidade, afirma que a narrativa mítica é considerada verdadeira, uma vez que o mito, depois de criado, passa a ser objeto do culto popular, especialmente nas sociedades mais primitivas. Ele é verdadeiro porque é vivido através dos atos litúrgicos. Os rituais, ao rememorarem as façanhas realizadas pelas divindades, exercem um grande fascínio sobre os fiéis, que se sentem tomados por um poder sagrado. Isso acontecia com as bacantes da cultura greco-romana e acontece hoje com as mães-de-santo do candomblé baiano.

Com a passagem da tradição oral para a escrita, a palavra mítica adquire o caráter de dogma de fé, não admitindo contestação: “o que está escrito, é a verdade”, pois Buda disse e, sucessivamente, Moisés, Cristo e Maomé disseram! Mesmo quando o mito contraria a lógica, em vista de que sua criação não depende da formação de uma consciência reflexiva. Trata-se de uma “protofilosofia”, porque a resposta à pergunta do homem sobre o universo e seus fenômenos é dada não pelo pensamento conceptual, mas pela fantasia criadora de imagens. Daí a relação profunda entre mito, poesia e infância, categorias estas que superam os limites do tempo e do espaço.

Com a evolução da sociedade, o homem começa a pensar e a reflexão consagra o fim da inocência mítica. Aos poucos, vai acontecendo a separação entre o Eu, Deus e o Mundo, concepções não distintas na época mítica. Uma vez perdidas as verdades coletivas e absolutas do estágio mítico, cada homem é obrigado a descobrir seus próprios valores de vida. O mito, não mais vivido, perde sua sacralidade e torna-se apenas uma lenda representada artisticamente no poema, no conto, no teatro.

Com o progresso das ciências, o papel do mito passa a ser exercido por poetas e artistas. A estes cabe lançar mão da fantasia para criar mundos imaginários, onde as aspirações do inconsciente coletivo possam se realizar. O mito pode ser definido como uma “macro-metáfora”, pois é a criação de uma história ficcional que estabelece parentescos entre realidades diferentes, para captar parcelas de sentido do mundo. Em contrapartida, qualquer texto de arte literária encerra aspectos míticos pelo concurso da imaginação, que desafia a lógica existencial. Os arquétipos míticos da luta e do triunfo do princípio do bem sobre o princípio do mal se encontram na concepção do herói épico e na idealização do cavaleiro andante da novela medieval. Estão também na inspiração do romance de amor e de aventura, na literatura de cordel, no duelo entre o detetive e o criminoso do conto policial, na configuração do herói da ficção científica, na elaboração de fábulas e personagens da telenovela.

Fernando Pessoa, no poema Ulisses, ao recontar a lenda do herói grego que, durante a viagem de volta de Tróia para Ítaca, sua terra natal, teria fundado a cidade de Lisboa (evolução fonética do nome Ulissipona, “cidade de Ulisses”), afirma que o mito é o “nada” (pois não existiu no plano histórico), mas é “tudo”, porque foi a figura aventurosa do herói grego que estimulou os lusitanos a desbravar “os mares nunca dantes navegados”, deslocando o eixo do comércio do Mediterrâneo para o Atlântico.