Pensar é preciso/V/Na caverna do monte Hira e a compilação do Alcorão

Na caverna do monte Hira


Maomé é o nome português, do francês Mahomet, derivado do turco Mehmet e do árabe Moḥammed ou Muhammad. Nasceu, entre 560 e 570, na Meca, naquela época importante centro cultural e religioso da atual Arábia Saudita. Sua família pertencia a um clã que tomava conta do templo Caaba (”Cubo”), uma espécie de Panteon árabe, onde eram guardados vários ídolos e objetos sagrados, entre os quais a “Pedra Negra”. Para os geólogos trata-se de um meteorito, mas a tradição muçulmana criou a lenda de um objeto sagrado que veio do Céu e caiu no Jardim do Paraíso. Deus a teria dado a Adão como sinal de perdão: a Pedra, originariamente branca, ter-se-ia tornada preta por absorver os pecados dos homens. No segundo milênio antes de Cristo, o Arcanjo Gabriel teria dado a Pedra Negra ao patriarca Abraão, que a teria levada para a Meca, junto com a escrava Agar e seu filho Ismael.

No Caaba havia imagens de mais de 360 deuses, venerados por devotos locais e por chefes de caravanas que faziam ponto na passagem pela cidade. Órfão de pai e mãe, Maomé foi criado por um avô e um tio que iniciaram o jovem pastor no ofício de comerciante, não recebendo escolaridade alguma e continuando analfabeto até sua morte. Durante uma viagem de negócios ao Iraque, perto da cidade de Basra (Bassora), um eremita cristão de nome Bahira, ao olhar para o jovem Maomé, teria dito que ele era o enviado de Deus que todos estavam aguardando. Com 25 anos, Maomé conheceu a rica viúva Cadija, 15 anos mais velha, com a qual se casou, mudando assim seu status social, passando de pobre para rico. Além desta esposa, ao longo de sua vida, teve mais 15 mulheres, todas elas viúvas abastadas, com exceção de Aicha, menina que tinha apenas 9 anos quando ficou noiva do Profeta.

No ano de 610, tendo aproximadamente uns 40 anos, Maomé, numa noite, enquanto estava meditando, recolhido numa caverna do monte Hira, teve una visão. Conforme acreditou posteriomente, fora visitado pelo arcanjo Gabriel, que lhe anunciou ser ele o escolhido como o último Profeta que Deus enviara à terra para salvar a humanidade. Acontece que a visão o deixara em estado de transe, suando copiosamente. Pensou em alucinação ou em alguma possessão diabólica, mas a esposa Cadija o confortou e o levou a consultar o sábio cristão Waraqa, seu primo. Com a ajuda deste mestre, Maomé interpretou a visão como sendo uma experiência idêntica às vividas pelos profetas do Antigo Testamento e pelo próprio Jesus Cristo. A esta visão no monte Hira se sucederam várias outras, ao longo de sua vida, ministrando-lhe, paulatinamente, a doutrina que se encontra registrada no Corão, o livro sagrado da nova religião, o Islamismo.

A partir do ano de 613, Maomé, encorajado por familiares e amigos, começou a pregar publicamente os ensinamentos que teria recebido do arcanjo Gabriel. Nascia, assim, a religião chamada Islã (“submissão à vontade divina”). Ao proclamar a sua mensagem na cidade, ganhou seguidores e, como era de se esperar, também opositores. Na medida em que seus fiéis cresciam, Maomé começou a se tornar uma ameaça para as tribos locais, especialmente para os Coraixitas, a sua própria tribo, que tinha a responsabilidade de cuidar do Caaba, que nesta altura hospedava centenas de ídolos que os árabes adoravam como deuses. Muitos habitantes da Meca rejeitaram a sua mensagem e começaram a perseguí-lo, bem como aos seus seguidores. O motivo não deixava de ser também econômico: Maomé, pregando a fé apenas num único deus, Alá, prejudicava os negócios dos guardas do templo politeísta. A verdade é que Maomé, de forma semelhante a Jesus Cristo, pregando o amor e a fraternidade, encantou os homens das classes menos favorecidas, provocando o ódio dos judeus e dos cristãos abastados.

Para escapar da perseguição, em 622, Maomé foi obrigado a abandonar sua cidade natal, começando uma migração, conhecida como a Hégira, que deu origem ao calendário lunar muçulmano, estabelecendo-se na cidade de Medina. Lá, ele se tornou o chefe da primeira comunidade islâmica. É preciso relevar que, no século VII, a península arábica era habitada por povos que levavam uma vida nômade, divididos em tribos, lutando entre si. Maomé conseguiu dominar, através de sucessivas vitórias, não somente os habitantes de Meca e Medina, mas a maioria das povoações ao redor das duas cidades.

Ele se revelou um ótimo estrategista bélico, pois sua organização militar, criada durante estas batalhas, foi usada posteriormente para derrotar várias tribos da Arábia e povos de outras regiões. As conquistas dos muçulmanos se estenderam da Pérsia à bacia do mar Mediterrâneo, com relevância na península ibérica e na costa francesa. Além de militar, Maomé teve também um grande mérito político, conseguindo unificar vastos territórios sob o signo da religião islâmica. Os antigos costumes tribais das Arábias foram substituídos pela Sharia (lei do Corão) e pela Sunna (a Tradição de Muhammad, registrada nos hadith, ditos e feitos do Profeta). Organizava-se, assim, o Estado árabe, regido por um chefe que reuniu numa única pessoa o poder religioso, militar e político.

A criação de um Estado teocrático, juntando na mesma pessoa o poder material e espiritual, foi o grande erro involuntário de Maomé, pois ele não previu que seus sucessores não estariam à altura de sua portentosa personalidade. Sua morte é lendária: a crença mais comum é que o Profeta, acometido de um mal súbito, no ano de 632, ascendeu aos céus envolvido numa nuvem, a partir da Cúpula do Rochedo (que ainda não existia, pois foi construída pelo califa Abd al-Malik, em 691!), em Jerusalém. Ele teria feito uma viagem noturna, visitando o Paraíso, onde teria se encontrado com os dois outros grandes Profetas que o precederam, Moisés e Jesus Cristo. Com seu falecimento deu-se o mesmo que costume acontecer com os grandes ídolos religiosos ou líderes políticos: nenhum dos seguidores tem o carisma do mestre para continuar sua obra. A briga pela sucessão de Maomé, logo de cara, originou uma crise que dividiu o Islã em duas facções historicamente adversas: sunitas e xiitas.


A compilação do Alcorão


O Corão (ou Alcorão, pela aglutinação do artigo árabe “Al”: o sentido de nome é “recitação”) foi escrito por várias pessoas e ao longo de muito tempo. Maomé, por ser analfabeto, não escreveu nada. Quando em vida, recitava a parentes e discípulos letrados versos que teria ouvido durante suas visões, ao longo de duas décadas. Os amigos ouvintes registravam os ensinamentos do Profeta em folhas de tamareira, pedaços de pergaminho, omoplatas de camelos ou pedras de várias formas. Durante as noites de vigília do Ramadã, Maomé reunia seus discípulos e recapitulava o conteúdo de suas visões. Depois de seu falecimento, foi recolhido o material disperso que, junto com os relatos das pessoas que se lembravam das palavras do Mestre, passou a constituir o corpus básico da nova doutrina considerada sagrada pelos islamitas.

A redação oficial do Corão, o texto fundamental, foi realizada, entre 650 e 656 (aproximadamente vinte anos após a morte de Maomé), durante o califado de Otman, que nomeou uma comissão para decidir o que deveria ser incluído ou excluído do texto final do Alcorão. Foi então constituído um "livro-referência" a partir do qual se criaram seis cópias que foram enviadas para Meca e outras cidades importantes. Outro texto que apresenta a doutrina muçulmana é o Hadith (Tradições), uma coletânea de ditos e decisões do Profeta, não registrados no Corão.

Como é fácil perceber, o processo de composição da Escritura islâmica não é muito diferente da Escritura judaica, cristã e de outras religiões. Não são os Profetas (Moisés, Salomão, Buda ou Cristo) que escreveram os textos considerados sagrados, mas seus discípulos ou devotos, geralmente depois de uma longa tradição oral, que acaba mitificando acontecimentos e personalidades e apresentando variantes e contradições. A diferença é que, enquanto os textos bíblicos são constantemente submetidos a novas exegeses, na tentativa de dirimir as dúvidas e explicar as passagens contraditórias, o Alcorão está proibido de ser investigado para evitar que os muçulmanos tenham dúvidas e se afastem da fé em Alá.

Os devotos do Islã se orgulham do Corão ser a única Escritura da história da humanidade que se tem preservada no texto original, sem mudar sequer uma vírgula. É preciso acreditar no que está escrito sem questionamentos, pois a palavra revelada a Maomé é “final e inalterável”, a última e definitiva “revelação” de Deus à humanidade. Os versos do livro sagrado nem sequer podem ser traduzidos. Por isso, todos os muçulmanos, independentemente de sua língua materna, recitam o Corão no árabe original. Nenhuma tradução poderia reproduzir o som das palavras que levam os devotos às lágrimas. Trata-se de uma sinfonia inimitável!