Os Lusíadas, de Camões: os descobrimentos marítimos e a revolução comercial.
A obra literária do maior poeta do classicismo português, Luís Vaz de Camões (1524-1580), é pouco estudada no nosso país e quase desconhecida por quem fala outro idioma. E essa é uma grande injustiça. Camões, além de ter sido um dos maiores poetas líricos do Renascimento europeu, escreveu o poema épico que melhor ilustra a importância e o espírito do movimento renascentista. Enquanto outros poetas trataram de aventuras cavalheirescas (Orlando Furioso, do italiano Ludovico Ariosto) ou religiosas (O Paraíso Perdido, do inglês John Milton), seus Lusíadas abordam o assunto mais importante da época: as grandes navegações e os descobrimentos marítimos, que causaram uma verdadeira Revolução Comercial que, por sua vez, propiciou o advento da Revolução Industrial.
Lembramos que, até o final do séc. XV, os europeus pensavam que o Ocidente acabava nas lendárias Colunas de Hércules, o nome de dois promontórios que estão à entrada do Estreito de Gibraltar, separando a ponta da Europa (península ibérica) da África (região montanhosa de Ceuta). As transações comerciais eram feitas apenas no mar Mediterrâneo, chamado de mare nostrum (o nosso mar). Com as Grandes Navegações e a descoberta de regiões e costumes de sociedades humanas bem diferentes, o eixo do comércio se desloca do Mediterrâneo para o Oceano Atlântico. A viagem do navegador português Vasco da Gama tinha a finalidade de descobrir o caminho marítimo para a Índia, em vista de que o percurso via terra era muito demorado pela precariedade do meio de transporte da época, limitado ao uso da carroça. Não faltava também a motivação religiosa: difundir o cristianismo, batizando os infiéis.
A armada portuguesa larga do porto de Belém, em Lisboa, no ano de 1498. A esquadra marítima lusitana passa pela ilha da Madeira, atravessa as Canárias, costeia o Cabo Verde, navegando pela costa africana. Beira províncias do Zaire e do Congo e, após meses, chega ao cabo das Tormentas, batizado com o nome de Boa Esperança. Após um breve descanso em terra firme, os portugueses retomam o caminho marítimo até Moçambique e Melinde. De lá, finalmente, chegam à Índia, desembarcando no porto de Calicute. Depois de transações comerciais, os portugueses retomam o caminho de volta para Lisboa, não sem antes ter feito uma parada na fabulosa Ilha de Vênus. A deusa do amor recompensa o herói e seus companheiros pelo sofrimento da longa viagem, pedindo ao seu filho Cupido que acalente a paixão nos corações dos visitantes. O poema termina com a descrição da festa dos marinheiros portugueses com lindas ninfas.
Este é o resumo da fábula dos Lusíadas, exposto na ordem cronológica dos fatos para facilitar o entendimento da história. O poema é muito longo e complexo para ser analisado em poucas páginas. Sua interpretação exige um bom conhecimento de mitologia greco-romana (o próprio título remete a Luso, filho de Baco) e de história e geografia de Portugal, além de poética para apreciar a beleza de seus versos. Vou fazer referência apenas a dois episódios, transcrevendo alguns versos. A triste história da personagem Inês de Castro chegou até ao anedotário popular, pela expressão “agora Inês é morta”, parodiando o verso de Camões:
“Aquela que depois de morta foi Rainha”
O poeta conta como o fogo da paixão amorosa incendiou o coração do príncipe Infante pela bela aia Inês:
“Estavas, linda Inês, posta em sossego...
“Tu só, tu, puro amor, com força crua...
Mas o rei Afonso IV não aceita o relacionamento ilegítimo de seu filho e decreta a morte da jovem. Inês implora a clemência do Rei pelos dois filhos que tivera com o príncipe herdeiro:
“Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito...
A estas criancinhas tem respeito...
O Infante, no ano seguinte à morte de Inês, assumindo o trono com o nome Dom Pedro I de Portugal, em 1355, resgata a memória da amada, afirmando que casara com ela secretamente e que, portanto, os filhos que tivera com Inês eram legítimos.
Outro episódio famoso d’ Os Lusíadas tem como protagonista o Velho do Restelo e como cenário o porto de Belém, em Lisboa, de onde os expedicionários partiram para chegar à Índia por uma via marítima mais curta. Na despedida, um senhor de idade, comovido pelo choro de mulheres e crianças, se levanta e faz um veemente discurso reprovando as aventuras marítimas, que causam o abandono de esposas e filhos e deixam a pátria desprotegida:
“Mas um velho de aspecto venerando,...
Tais palavras tirou do experto peito:
Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!”
A figura do Velho do Restelo, em contraste com o Poeta do prólogo que exalta as grandes navegações, expressa a voz crítica de Camões. Ele, olhando os acontecimentos da Índia com uma perspectiva de aproximadamente 70 anos, julga o domínio português nas colônias improdutivo e causa do enfraquecimento do Reino de Portugal. O episódio exprime, ainda, o Camões cansado das lutas e das guerras, que anseia à paz, com saudade da terra natal e das tradições bucólicas de seu povo. Como se pode perceber, o poeta lusitano tem uma personalidade dividida, múltipla, apresentando, ao lado da exaltação patriótica, uma consciência crítica dos fatos que está cantando. É um prenúncio da criação dos heterônimos de Fernando Pessoa: a expressão artística da coexistência de uma pluralidade de seres na mesma pessoa. São os laços da inteligência crítica que fazem a ponte entre os dois maiores poetas de Portugal, o renascentista e o modernista.