Pensar é preciso/VII/Rousseau: o mito do bom selvagem


Rousseau: o mito do bom selvagem

O Romantismo iniciou na França, mas teve seu apogeu na Inglaterra e na Alemanha, ao longo de um século: segunda metade do séc. XVIII e primeira do XIX. Seus pressupostos filosóficos e políticos podem ser encontrados no movimento iluminista: a afirmação dos direitos do indivíduo e a livre expressão da sensibilidade. Romantismo é sinônimo de liberdade em todos os sentidos: liberdade política, opondo-se a qualquer forma de absolutismo; religiosa, rejeitando todo tipo de dogmatismo; estética, contra as regras poéticas do Classicismo; social, contra a opressão das classes dominantes. Contra o espírito aristocrático da Renascença e do Iluminismo, o Romantismo prega a popularização da cultura, propondo uma nova maneira de sentir e de viver.

O suíço Jean-Jacques Rousseau, filósofo e escritor de origem francês, conviveu com os maiores expoentes do Iluminismo e colaborou na Enciclopédia. Ele é considerado o precursor do Romantismo pela criação do mito do “bom selvagem”. Convencido de que o homem é bom por natureza, sendo o viver em sociedade a causa da sua degradação moral, passou a condenar o estudo das ciências e a prática das artes. Privilegiando o naturalismo, o primitivismo e os costumes indígenas, tornou-se um implacável crítico da organização social. Tanto que um seu opositor afirmou que, de tanto ouvir Rousseau exaltar a vida animal, dava vontade de “andar de quatro”.

O absurdo de privilegiar o código da natureza contra o avanço civilizacional, propiciado pelo culto da ciência, da filosofia e das artes, só podia germinar numa mente dominada por preconceitos religiosos. Rousseau teve uma educação calvinista, que lhe impedia alcançar a verdade, que se encontra na constatação dos fatos históricos, irrecusáveis por qualquer inteligência não comprometida por idéias fixas. Apenas a ignorância ou a má-fé pode achar que há mais moralidade entre os homens primitivos do que nos civilizados.

Os exemplos de selvageria entre tribos indígenas são inúmeros: astecas que arrancam o coração dos vencidos; índios norte-americanos que escalpam os perdedores; ancestrais que se alimentam de carne humana para se apossar da força dos vencidos. O culto do primitivismo, compartilhado também por alguns atuais ambientalistas que chegam a praticar formas de zoofilia, prejudica o avanço científico e o progresso social. Lembro que numa visita à ilha de Fernando de Noronha, o paraíso ecológico onde falta água e eletricidade, notei que uma pá para geração de energia eólica não estava funcionando. Perguntado o motivo, fiquei sabendo que a paralisação foi devida a um protesto de ecologistas pela morte acidental de uma ave!

A meu ver, a importância de Rousseau reside mais no campo político, onde suas idéias foram frutíferas, antecipando os ideais da Revolução Francesa, e ainda hoje sustentáveis e benéficas. Ele achava que a desigualdade entre os homens tinha como causa o Estado despótico e o acúmulo de riquezas nas mãos de poucos. Era preciso evitar a exploração do homem pelo homem. Propunha, então, para a formação de um Estado ideal, um acordo entre os cidadãos visando a cessação de direitos individuais em prol da coletividade, balanceando benefícios sociais com os deveres de cada um. Seus ideais foram retomados pelo revolucionário Robespierre e por Victor Hugo, o escritor mais prolífero do Romantismo francês.

O Romantismo, por ser muito abrangente no tempo e no espaço, afirmando-se em cada país de uma forma diferente, não deixa de ser um movimento cultural contraditório consigo mesmo, apresentando facetas contrastantes. Os estudiosos distinguem duas correntes principais, uma “quietista” que se alimenta de sonho e de ilusões, idealizando a realidade; e outra “revolucionária” que repudia o modelo burguês de vida, insurgindo-se contra qualquer tipo de autoritarismo e de obrigação social ou moral.

Entre os maiores poetas do primeiro tipo de Romantismo aponto os franceses Alfred de Musset e Lamartine, o italiano Giacomo Leopardi, o inglês John Keats, o norte-americano Edgar Allan Poe. Este último escritor, muito bom na poesia e na prosa (criou o moderno conto policial) é considerado o primeiro autor das colônias a influenciar a cultura européia, invertendo a direção das influências. Seu poema The Raven (O Corvo) exprime artisticamente o refúgio dos poetas românticos no mundo do sonho e da imaginação, pois a realidade é opressora dos sentimentos. A imagem do corvo imóvel, acocorado no umbral do seu quarto, simbolizando a insensibilidade do pai adotivo do poeta e a impossibilidade de vencer as forças adversas aos anseios individuais, é reforçada pelo verso-estribilho never more (“nunca mais”).

A corrente revolucionária do Romantismo surgiu na Alemanha, provocada pela aloucada peça de Frederico Maximiliano Klinger, Sturm und Drang (“Tempestade e Revolta”), publicada em 1776, que colocou em xeque as normas estéticas do Neoclassicismo francês. Mas a revolta não era apenas contra as regras poéticas, mas também contra o imperialismo francês e o secular predomínio da cultura clássica, até então apanágio dos povos latinos. Após as grandes navegações e o descobrimento de novos continentes, o desenvolvimento do comércio provocou o início da Revolução Industrial para atender às exigências dos novos mercados. E nisso os povos anglo-saxônicos se sobressaíram. O imperialismo inglês começou a se afirmar em detrimento das anteriores superpotências da Espanha e da França. E, como sempre acontece, o poder econômico impõe a cultura dos vencedores.