Trabalho, Meritocracia, Justiça
“Um dia trabalharei. E dentro de vinte e cinco ou trinta anos, no máximo,
cada homem trabalhará. Cada homem!”
Esta fala do barão Nikolai Tusenbach, personagem da peça As três irmãs, de Anton Tchekhov, representada em 1901, foi profética, pois, 16 anos depois, estourou a Revolução Bolchevique na antiga União Soviética, obrigando todos os homens a produzirem bens para a coletividade. Estava instalado o regime comunista com a pretensão de pôr em prática os ideais socialistas de Karl Marx. Pena que os privilégios, tirados da classe nobre da época czarista, reaparecessem ao longo do domínio dos burocratas soviéticos, levando a revolução comunista ao fracasso.
Na verdade, o trabalho é um direito e um dever fundamental do ser humano, sendo a única atividade que realmente nobilita nossa existência. “Direito” porque, se não encontrar um emprego decente, como uma pessoa adulta pode sustentar a si e a sua família? Mas é, sobretudo, um “dever”, pois, se o homem não se preparar para um ofício, dificilmente arrumará um bom emprego. Toda criança, desde cedo, deveria ser estimulada, pela Família e pelo Estado, a pensar no seu futuro, a se perguntar “o que vou fazer quando crescer”? Completado o ensino médio, se não tiver vocação pela intelectualidade e quiser ou puder fazer um curso universitário, deve escolher uma profissão, não importa qual. Qualquer trabalho torna-se nobre, quando é realizado por competência e amor. Quem adquirir um “saber fazer” alguma coisa (know how), nunca estará desempregado por muito tempo.
Acontece que alguns jovens, especialmente os que não recebem a atenção dos pais, se acostumam a uma forma leviana de vida, apenas curtindo baladas, “ficando” com namoradas e vivendo encostados em familiares. Quando acordam para a vida, já adultos, entram em desespero, pois percebem que não conseguem competir com quem se preparou. Pagam, assim, o preço da infração da lei cósmica, que impossibilita a colheita sem plantio. E, se plantou vento, irá colher tempestade! Quem foi vagabundo na juventude, dificilmente vai ter uma boa velhice. Há gente que não procura “trabalho”, mas apenas “emprego”. É triste constatar que esta tendência já se tornou um fato cultural no nosso país, pois o exemplo vem de cima. Muitos funcionários públicos vivem mamando nas tetas do governo, produzindo pouco e ganhando muito, em detrimento de outros que trabalham muito e ganham pouco.
No Brasil, a injustiça social, especialmente a salarial, é simplesmente pavorosa: o mesmo governo, que paga um mínimo de 450 reais, autoriza o pagamento de 45.000 ou mais para altos burocratas. É absurdo constatar que um ser humano acaba recebendo um salário cem vezes maior do que outro! A proporção é descomunal, ofendendo a inteligência e a dignidade humana! Em alguns países (especialmente da Escandinávia), cultural e economicamente mais desenvolvidos, a proporção não pode passar de quatro vezes: se o salário mínimo é de mil euros, o governo não vai pagar mais do que quatro mil para qualquer funcionário público.
Quem sabe, um dia chegaremos a um Estado de Direito, onde a lei será igual para todos, na realidade e não apenas no papel; onde cada qual seria remunerado conforme o mérito, o trabalho realmente efetuado, com a abolição de qualquer forma de privilégio. Alguém poderia nos dizer para que serve o cargo de “Delegado de Ensino”, ocupado por nomeação política? Não bastam o Diretor da Escola e o Secretário da Educação para orientar as atividades docentes e discentes? Para que tantos pedagogos, coordenadores, orientadores educacionais, assistentes sociais, psicólogos nas escolas públicas? Com tanto dinheiro gasto para intermináveis reuniões de estéreis “planejamentos”, poder-se-ia remunerar melhor o professor que realmente trabalha.
Estes são apenas alguns exemplos dos inúmeros cargos burocráticos de quase nenhuma utilidade, criados como cabides de empregos para gente envolvida com a política. Os muitos ministérios, secretarias, cargos públicos por indicação servem apenas para acomodar partidários e familiares de políticos. Infelizmente, os Três Poderes constitucionais, o Legislativo, o Judiciário e o Executivo, agem como corporações interessadas em defender os privilégios de seus membros: o primeiro legifera em causa própria, o segundo julga legal o que lhe convêm e o terceiro, a Presidência da República, que dá o exemplo de gastos desnecessários, ratifica os abusos. Os poderosos, ciosos de seus “direitos adquiridos”, pouco se importam com a transgressão do princípio constitucional da isonomia, a igualdade de todos perante a lei, pelo qual para o mesmo trabalho deveria haver retribuição idêntica.
Esta falta de sentimento de justiça social cria revolta no cidadão, quando vê que numa cidade vizinha, por pertencer a outro Estado, a professora de cá ganha a metade da de lá; que o docente do ensino básico de um Município ganha mais do que o professor do ensino médio do Estado; quando o Prefeito vai de carro do ano buscar a “cesta básica”; quando a funcionária da Petrobrás, que trabalha na cidade do Rio de Janeiro, num escritório com ar condicionado, recebe o auxílio de “insalubridade”; quando um Juiz de Direito recebe, entre outros privilégios, ajuda de custos para pagar a escola particular de seus filhos, enquanto a balconista não encontra vaga para suas crianças na escola pública; quando o Presidente da República, em detrimento do seu concorrente, usa toda a máquina administrativa para se reeleger.
O problema é que, se em tese e pela lei, todos os homens são iguais, na prática, existem uns que se consideram “mais iguais” do que outros, conforme reza uma famosa fábula. Tentar levar vantagem é natural, faz parte do egoísmo humano. Por isso, cabe ao poder público coibir as injustiças. A verdade é que a democracia política só funciona se existir uma democracia econômica. É preciso entender que o bem público, no fim, se reverte também no bem privado. Recentemente, um empresário italiano fez uma experiência inédita: ele e sua família tentaram viver por um mês com o salário médio que pagavam a seus empregados. Experimentou que o dinheiro acabara no 20º dia. Resolveu, então, aumentar o ordenado dos funcionários não por generosidade, mas por puro egoísmo, pois verificou que o stress causado pela falta de dinheiro prejudicava a qualidade e a quantidade dos produtos.
Na verdade, é preciso entender que não se constrói cidadania alguma sem um profundo sentimento de justiça. Mas a justiça realmente existe? Esta interrogação ocupou o espírito de muitos estudiosos da natureza humana e do viver em sociedade. Um personagem de uma peça de Shakespeare, num diálogo sobre a resolução dos problemas do Reino, criticando os que cometem injustiças em nome da Lei, especialmente os advogados que, para defender criminosos, chegam a faltar com a verdade, exclama:
“Em primeiro lugar, matemos todos os advogados”
A Justiça romana, correspondente à grega Diké, era a deusa dos julgamentos, filha de Júpiter (o “Poder”) e de Themis (a “Prudência”), irmã da “Verdade”. Tal divindade alegórica era representada como uma mulher nua, de porte majestoso. A partir deste protótipo, ao longo da cultura ocidental, a Justiça recebeu várias configurações por escultores e pintores, que tentaram dar uma forma plástica ao conceito. A estatuária grega representa a Justiça como uma mulher bonita, sempre em pé, segurando na mão esquerda uma balança e na direita uma espada. De olhos bem abertos, observa o equilíbrio entre os dois pratos, pois é lá que se encontra o justo (ison=isonomia); a espada, além de indicar a força, simboliza também o cortar justo no meio as razões apresentadas pelos dois lados em litígio.
Já os romanos representavam a deusa Justitia com os olhos vendados, significando a imparcialidade nos julgamentos. Sem a espada, ela segura a balança com as duas mãos, como sinal de firmeza. A força está na palavra: jurisdição significa jus dicere (“dizer o que é certo, justo, direito”) e lex (“a lei”) tem como étimo o verbo legere (“ler” em voz alta, para ser ouvido por todos). Na visão medieval, uma pintura do séc. XIII retrata a Justiça ao lado da Prudência conversando nas nuvens, indicando claramente que a Justiça verdadeira só existe lá no Céu.
Na entrada da Suprema Corte da capital norte-americana, a Justiça é representada por uma estátua colossal, majestosa, colocada no alto da escadaria. A figura feminina está sentada, vestida solenemente, segurando na mão direita a Constituição de 1787. Em Brasília, na frente do Supremo Tribunal Federal, pode-se contemplar a escultura de Alfredo Ceschiatti: o Poder Judiciário é representado por uma mulher pequena, sozinha, sem a balança, com a espada descansando sobre suas pernas, de olhos vendados, talvez para não enxergar as mazelas dos Três Poderes.
Na cultura ocidental, foi Montesquieu, o precursor e teórico da Revolução Francesa, que codificou o direito natural das coisas na sua obra Do Espírito das Leis (1748), desenvolvendo a teoria da separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que está na base da maioria dos atuais governos constitucionais. Cada qual no seu lugar, fazendo o que lhe compete, sem invadir o espaço alheio e ganhando conforme o mérito. Tal conceito racional de justiça está descrito de uma forma bem simples na peça O Círculo de Giz Caucasiano, de Bertolt Brecht:
“Vocês que conhecem a história do círculo de giz,
lembrem-se da opinião dos antigos.
As coisas devem ser entregues a quem melhor as serve.
Eu quero dizer, as crianças às pessoas mais maternais
para crescer e florescer; as carruagens aos bons condutores
para que a viagem seja boa; e o vale aos que vão irrigá-lo
para que a colheita seja abundante”.
Mas será que essa justiça existe na realidade ou, se houver, ela é igual para todos? Ela é tão natural assim? Não se trataria apenas de um mito cultivado por agrupamentos civilizados? Efetivamente, se a gente olhar para a natureza, irá perceber desigualdades e criminalidade em todo lugar: uma árvore robusta e frutífera, contraposta a outra raquítica e estéril; o leão que mata e come o cordeiro indefeso, sem piedade alguma; enchentes aqui e secas acolá. O próprio ser humano não nasce com o sentimento de justiça: a criança é naturalmente egoísta, apossando-se da boneca que não é dela. Já citei, em outro lugar, a definição do filósofo inglês Thomas Hobbes: “o homem é o lobo do homem”. A meu ver, a idéia de justiça está intrinsecamente relacionada com a necessidade de viver em sociedade. Pertence ao código cultural e não natural. Em certo momento, o homem se deu conta de que, se não respeitasse a mulher do outro, este também não respeitaria a sua e começaria a briga, e a vida em comunidade se tornaria um inferno. Daí a necessidade do surgimento da lei e da punição.
Portanto, o que distingue uma sociedade civilizada de uma selvagem, não é a ausência da maldade ou da corrupção, mas sua impunidade. A previsão da não punição é o maior estímulo para a prática da delinqüência. A advertência moral não funciona sem o medo do castigo. As igrejas aterrorizam seus fiéis com as penas do Inferno, caso não se redimirem de seus pecados. Educação e punição devem ser considerados dois conceitos complementares e não excludentes. O que induz as crianças a estudar é o medo da reprovação e o conseqüente castigo paterno. Pode-se facilmente verificar que a conjunção da cultura do civismo com severas penalidades levou países a um alto grau de civilização.
Contrariamente, quando o rigor da lei é aplicado apenas aos pobres indefesos, temos o atraso civilizacional. Em países subdesenvolvidos, os grandes criminosos, especialmente os que assaltam o erário público, os sanguessugas da sociedade, dificilmente pagam pelos seus delitos. Tendo o poder econômico e a influência política, eles contratam os melhores advogados que, aproveitando das brechas que se encontram nas leis e da morosidade da máquina burocrática da Justiça, adiam a condenação ad infinitum, até a prescrição do crime.
Acrescente-se que, além do emaranhado absurdo do sistema judiciário e da incompetência de alguns membros, existe corrupção nos próprios Tribunais. Como diziam os antigos romanos: atque custodem quis custodiat? (“e quem vai tomar conta do guarda?”); ou, na expressão do escritor contemporâneo Norberto Bobbio: “quem controla os controladores?”. Machado de Assis é mais explícito: “é claro que a justiça, sendo cega, não vê se é vista, e então não cora”. Mas que vai se fazer: como os outros humanos, também os juízes estão sujeitos às limitações da nossa espécie. Da Justiça podemos dizer o mesmo que se costuma falar da Democracia: “ruim com ela, pior sem ela”!
Mas, quanto mais fraco é o homem, mais fortes deveriam ser as instituições jurídicas para se evitar falcatruas. O princípio constitucional de que “a lei é igual para todos” deveria ser aplicado de uma forma inexorável e em qualquer circunstância. Infelizmente, o conjunto de leis que vigoram atualmente (a própria Constituição, os Códigos Penal e Civil e outras fontes normativas) está eivado de privilégios e imunidades que anulam o preceito da isonomia, considerando uns cidadãos “mais iguais” do que outros. O pior é que a prática da desonestidade e da esperteza, de tão generalizada, se torna modelo de comportamento, pois o folgado, o malandro, o corrupto acaba tendo aceitação social. Na prática, desmente-se o princípio ético de que “o crime não compensa”. Compensa, sim, e como! O desonesto, o traidor das promessas públicas e privadas, além de ser repetidamente eleito para ocupar cargos públicos, se torna o protótipo do herói admirado pelo povão que exige que tais “virtudes” sejam encarnadas nos personagens de telenovelas. A massa popular sente um prazer masoquista em ser enganada e aprecia a capacidade de disfarçar, pois, como dizia ironicamente Machado de Assis: “O pecado, depois do pecado, é a revelação do pecado”.
Faz-se necessária nova ordem jurídica que acabe com imunidade parlamentar, foro privilegiado, voto secreto, distinção entre justiça militar e civil, regalias sem merecimento, segredo de justiça. Além do habeas corpus deveria funcionar o habeas data: nenhuma informação pode ser ocultada, nenhum negócio considerado sigiloso quando implicar em despesas com o dinheiro de nossos impostos. O sistema de escuta telefônica ou qualquer outra forma de invasão de privacidade deve ser permitido toda vez que estiver em jogo o interesse da coletividade. Quem não quiser ter sua vida vasculhada não ocupe cargos governamentais. É bom lembrar que o étimo da palavra República significa “coisa pública”, portanto, de todos, “visível” para qualquer cidadão. O regime democrático implica numa transparência absoluta. Recordemos as palavras de Martin Luther King: “a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. A iniquidade é sempre causa de discórdia. O próprio Rei da França Luis XIV, autor da famosa frase “O Estado sou Eu”, reconhecia isso ao afirmar que toda vez que indicava alguém para ocupar um cargo de confiança arrumava cem inimigos e um ingrato.