Visão diacrônica (evolução do texto)
A abordagem extrínseca da literatura olha o texto mais do ponto de vista de sua evolução no tempo e no espaço do que de sua composição interna. É o método mais tradicional de estudo da obra literária, relacionado, de certa forma, com os avanços filosóficos, científicos, metodológicos e ideológicos do positivismo e do evolucionismo da segunda metade do século XIX. Como teria sido muito difícil para o cientista inglês Charles Darwin apresentar a tese revolucionária sobre as origens das espécies sem a classificação anterior em gêneros, feita pelo botânico sueco Carlos Linneu, assim, ao crítico literário seria impossível analisar uma obra peculiar, uma espécie de arte, sem o recurso ao estudo do gênero a que pertence e da época em que foi produzida. Como as espécies do mundo biológico evoluem continuamente de uma forma para outra sob o impacto da luta pela sobrevivência, assim as obras de arte adquirem várias feições em conformidade com as mudanças da sociedade. Se, a partir do romantismo, não se produziram mais poemas épicos relevantes, foi porque não existiram mais heróis nacionais dignos de serem exaltados. Explicar, assim, por exemplo, o como, o quando e o porquê se deu a passagem da narrativa épica para a forma romanesca é uma das tarefas da crítica diacrônica.
Essa modalidade de abordagem do texto literário é centrípeta, visto que a atividade crítica parte de fora para dentro: estudam-se a biografia do autor, as condições socioculturais que formaram sua personalidade, as escolas e os movimentos literários que lhe forneceram os cânones estéticos e o complexo ideológico em que viveu. Munido destes conhecimentos, o crítico inicia a análise e a interpretação de um texto dado, visando especialmente verificar até que ponto o autor é ‘filho de sua época’, reproduzindo as formas estéticas e os conteúdos ideológicos da classe social e do movimento literário. Entre as várias modalidades desse enfoque histórico e externo da obra artística, destacamos algumas que apresentam um relevante sucesso operacional:
Análise sociológica
Este tipo de abordagem considera a literatura, a par das outras atividades artísticas, como produto e expressão da cultura e da civilização de um povo nas diversas fases de seu desenvolvimento. A interação escritor-sociedade é proveniente dos seguintes fatores: a) o emissor (o escritor) é um ser socializado, que sente e vive os problemas políticos, sociais, religiosos e éticos de seu grupo; b) o código (a língua) de que se serve não é um fator individual, mas institucional, coletivo, cuja função primordial não é artística, mas prática, de comunicação; e por mais que o escritor possa alterar a linguagem, usando-a de modo peculiar para obter a função poética, o certo é que a parole artística só é possível a partir de uma langue; c) a mensagem (o texto produzido), muito embora fruto de uma individualidade poética, não é uma mônade estética, pois sofre as influências das convenções dos gêneros e dos movimentos que são produtos de uma coletividade: mesmo quando o artista é um renovador de formas estéticas e de conteúdos ideológicos (é o caso dos grandes autores ou gênios), ele não pode fugir da tradição cultural de que é obrigado a servir-se para estabelecer o contraste; d) o destinatário (o leitor), enfim, apesar de ser ficcionalmente virtual no ato da criação artística, não deixa de participar da mesma realidade histórica do escritor: quer dizer, o autor tem o intuito de atingir um público que vive os problemas de sua época, embora, devido ao caráter polissêmico e universalizante da verdadeira obra artística, esta possa ser usufruída também por leitores posteriores.
A crítica sociológica explora a análise dos quatro fatores apontados e procura inserir a obra literária num contexto cultural e social. Ela é válida do ponto de vista epistemológico, não quando, lançando mão de métodos específicos das ciências exatas, tenta explicar o fenômeno literário, buscando as causas na realidade econômica ou considerando a arte como expressão de uma ideologia, mas quando se preocupa em compreender os sentidos possíveis de uma obra, estabelecendo homologias entre as estruturas artísticas e as estruturas mentais de certos grupos sociais. É o chamado estruturalismo genético, cujo melhor formulador foi Lucian Goldmann. No que toca especificamente ao estudo do romance, por exemplo, o sociólogo francês apresenta a seguinte hipótese:
- “A forma romanesca parece-nos ser a transposição para o plano literário da vida cotidiana na sociedade individualista nascida da produção para o mercado. Existe uma homologia rigorosa entre a forma literária do romance, tal como acabamos de definir, nas pegadas de Lukács e de Girard, e a relação cotidiana dos homens com os bens em geral e, por extensão, dos homens com os outros homens, numa sociedade produtora para o mercado” (32, p. 16).
Numa linha semelhante de pesquisa trabalha o prof. Antonio Candido, autor da obra Literatura e Sociedade, que considera o fator social não apenas como matéria de que se serviria o artista, mas também e especialmente como um agente de estrutura e, então, como determinante do valor estético. Visto desta maneira, o fator social deixa de ser apenas um referente extratextual para tornar-se um elemento interno à obra de arte literária. Análises de tipo sociológico realiza também Erich Auerbach que, no famoso livro Mimesis (a representação da realidade na literatura ocidental), tenta estabelecer uma estreita ligação entre o estilo das obras de um autor e as estruturas sociais da época. Já os pensadores e críticos alemães Walter Benjamin e Theodor W. Adorno, ligados à estética marxista, estão preocupados em explicar o fenômeno da massificação da cultura, pois as técnicas de reprodução (a fotografia, o clichê, a litografia, o cinema) destroem a aura de individualidade do objeto artístico, substituindo o valor de culto pelo valor de consumo.
Análise psicológica
Tem em comum com o estudo sociológico da obra de arte o olhar de fora para dentro. A diferença está na maior importância que a abordagem psicológica confere ao estudo da personalidade do autor, deixando em segundo plano os fatores epocais. É muito antiga a concepção da arte como fruto de uma personalidade psiquicamente excepcional. Platão concebe o poeta como um indivíduo temporariamente possesso pela divindade: ele só poderia criar nos momentos em que se sentisse inspirado. Não obstante a concepção antitética de Aristóteles, que considera o poeta como um ser lúcido, no pleno gozo de suas faculdades intelectuais, um artífice que estrutura livre e conscientemente o material poético, a teoria platônica da inspiração artística como dom divino impregna as concepções sobre a criação literária na cultural ocidental. O mito da musa inspiradora, onipresente na poesia épica grega, latina e renascentista, cristianiza-se na estética neoplatônica de Marsílio Ficino: as musas são substituídas pelo Espírito Santo. A gênese da obra literária, portanto, é vista como semelhante à gênese dos Livros Sagrados e o poeta é considerado um profeta, um sacerdos, investido de um saber transcendental.
A teoria platônica do poeta inspirado e a teoria aristotélica do poeta artífice encontram uma reformulação na oposição salientada pelo filósofo alemão F. G. Nietzsche entre espírito dionisíaco e espírito apolíneo. Dionísio (na mitologia grega) ou Baco (na mitologia romana), fruto híbrido do amor de Júpiter com a princesa tebana Sêmele, por não ser aceito no Olimpo, errou pela Terra, ensinando aos homens o cultivo da uva e a produção do vinho. Seus fiéis, sátiros e bacantes, durante a celebração ritual, num estado de embriaguez, sentiam-se possessos pelo deus e compunham seus cantos sob a inspiração direta de Dionísio. A poesia ditirâmbica era um tipo de arte produzida por pessoas transformadas, que declinavam momentaneamente de sua personalidade durante as festas carnavalescas em honra de Baco. Contrastando com Dionísio, Apolo era um deus integrado no convívio celeste, patrono da luz e da ordem. A essência do ideal estético apolíneo reside na harmonia das formas, na exata proporção das partes com o todo. O artista que se inspira em Apolo é um ser que lúcida e conscientemente constrói suas mensagens, um técnico que conhece seu ofício.
Outros críticos, sem se referir explicitamente às teorias de Platão ou de Aristóteles acerca da gênese da criação poética ou à oposição nietzschiana dionisíaco/apolíneo, também fazem distinção entre um tipo de literatura fruto de espíritos estética e ideologicamente inconformados e a produção literária de escritores que não contestam os valores estéticos e as convenções sociais de sua época. Pensamos na oposição entre literatura dialógica e monológica de M. Bakhtine, entre fase irônica (mythos do Inverno) e romanesca (mythos do Verão) de N. Frye, entre escritores apocalípticos e integrados de U. Eco. Tal dicotomia pode ser percebida na oposição “romântico vs clássico”, estendendo-se estes termos não na concepção histórica de movimentos literários, mas como atitudes estéticas e espirituais, que enformam as várias fases da produção artística. Nesse sentido, na história da literatura, teríamos uma alternância da posição romântica e da atitude clássica perante a vida. A concepção do autor inspirado e do ator artífice representaria duas invariantes, estética e ideologicamente indicativas de valores constantes no meio das configurações variáveis de que se reveste cada período literário.
A crítica psicológica, porém, com pretensões científicas afasta-se dessas especulações míticas e supra-históricas, procurando encontrar a gênese da criação artística na carga biopsíquica de que o autor é portador. As modernas teorias da psicanálise, quando aplicadas ao estudo da obra literária, têm substituído o pensamento antigo da inspiração como dádiva divina pela teoria da arte como neurose. A gênese do furor poético residiria, então, num desequilíbrio emocional do autor, causado ou por deficiência física (a cegueira de Homero, a corcunda de Leopardi, etc.). O poeta seria um ser excepcional, inadaptado ao ambiente, que sublima na arte os recalques do subconsciente, quer individual (Freud), quer coletivo ou rácico (Jung). Na opinião de David Daiches,
- “pode-se considerar a biografia de um autor, ilustrada pelos fatos externos de sua vida e por elementos outros, tais como cartas e documentos que tenham o caráter de confissões e, com isso, construir uma teoria sobre a personalidade desse autor – seus conflitos, frustrações, experiências traumáticas e neuroses, ou o quer que seja – e valer-se de tal teoria para esclarecer cada uma de suas obras” (28, p. 337).
A biocrítica e a psicocrítica, centrada sobre o estudo da personalidade do autor, têm várias falhas, fáceis de ser apontadas: a) não serviriam para a análise de obras cujo autor seja anônimo ou suas notícias biográficas escassas; b) admitem implicitamente que toda obra literária seja imbuída de espírito dionisíaco e possua uma ideologia revolucionária; c) confundem o eu do narrador com o eu do autor, misturando elementos do mundo real com o universo imaginário; d) quando alcançam seu intento, conseguem apenas explicar a gênese da produção literária, não atingindo a compreensão nem da forma estética, nem do conteúdo ideológico.
A crítica psicológica adquire valor literário somente quando, da mesma forma que vimos em relação à crítica sociológica, tem o texto artístico como objeto de pesquisa; isto é, quando as leis e os princípios da psicologia e da psicanálise são aplicados não ao estudo da pessoa do autor, mas das personagens de ficção. Quer dizer, a metalinguagem crítica pode valer-se de elementos conceptuais oriundos das ciências psicológicas para explicar o comportamento de uma personagem, sua evolução emocional, suas contradições existenciais, suas idiossincrasias, suas reações ao ambiente ou o relacionamento psíquico que une ou separa as personalidades de determinada obra literária.
Também as categorias do espaço e do tempo ficcional podem ser relacionadas com estados psicológicos. Pode-se até chegar à determinação da estrutura poética de um texto, utilizando apenas elementos teóricos extraídos da psicologia. Como bem evidencia um estudioso do assunto, Dante Moreira Leite, na conhecida obra Psicologia e Literatura (36), de uma forma plena ou parcial, consciente ou inconscientemente, é impossível analisar e interpretar um texto literário sem lançar mão de processos psicológicos, pois a escolha do crítico não consiste em utilizar ou não a psicologia, mas em usar a psicologia do senso comum ou a psicologia científica.
Teoria dos arquétipos
Trata-se de construções críticas que se apoiam em concepções gerais sobre a cultura e a civilização dos povos com um olhar globalizante, rastreando fases e modos na história da literatura. Quem melhor trabalha nessa linha de pesquisa é o estudioso norte-americano Northrop Frye. Ele individualiza quatro tipos de crítica:
- a. A crítica histórica: teoria dos modos (o trágico, o cômico e o temático);
- b. A crítica etológica: teoria dos símbolos (fase literal, forma, mítica e anagógica);
- c. A crítica arquetípica: teoria dos mitos (mito da primavera = comédia; do verão = romance; do outono = tragédia; do inverno = sátira e ironia);
- d. A crítica retórica: teoria dos gêneros (épica, prosa, drama e lírica).
A maior ressalva que pode ser feita ao sistema crítico proposto por N. Frye é que ele não considera a obra literária como uma produção artística individual. Mas o autor de Anatomia da Crítica é coerente com tal posição teórica, pois, na “introdução polêmica” à sua obra, afirma que a crítica é uma estrutura do pensamento autônomo em relação à arte; que não existe aprendizado direto da literatura; que o que se apreende não é literatura, mas crítica da literatura; que um poema é imitação de outros poemas, fruto de convenções e gêneros e que, portanto, “para que haja crítica é necessário que a obra examinada seja relacionada com os dados de um quadro conceptual formado por referência indutiva a uma perspectiva de conjunto da literatura” (31, p. 18). Infelizmente, o recurso a um macrossistema crítico desse naipe, embora sendo fascinante e culturalmente muito rico, é operacionalmente ineficaz para a análise e a interpretação de um texto literário!
Teoria dos gêneros
A tripartição da literatura nos gêneros narrativo, lírico e dramático foi proposta por Aristóteles, o primeiro estudioso da teoria da literatura. Ele distinguiu a palavra narrada por um contador de histórias, em terceira pessoa (gênero épico ou narrativo); da palavra cantada pelo poeta, em primeira pessoa, com acompanhamento musical (gênero lírico); e da palavra representada por atores perante espectadores, em segunda pessoa, por meio do diálogo entre as personagens (gênero dramático). Quanto ao conteúdo, em síntese, o gênero narrativo (poesia épica, romance, novela, etc.) consiste em contar uma história; o gênero lírico em expressar um sentimento; e o gênero dramático (tragédia, comédia, ópera, etc.) em discutir um problema existencial.
Emil Staiger (42) distingue os substantivos épica, lírica e drama, usados tradicionalmente pela didática escolar para um macroagrupamento dos diferentes tipos de obras de ficção, segundo determinadas características formais (uma longa narração, um poema curto e uma peça teatral, respectivamente), dos adjetivos épico, lírico e dramático, conceitos que, oriundos da ciência da literatura, passaram a expressar virtualidades fundamentais do ser humano: o épico corresponde ao domínio do figurativo, o lírico ao do emocional e o dramático ao do lógico. No mesmo caminho, podemos relacionar a tripartição genérica da literatura com os três planos da linguagem de que fala o filósofo alemão Cassirer: o lírico é homólogo à linguagem na fase da expressão sensorial (idade pueril); o épico à linguagem na fase da expressão figurativa (juventude); o dramático à linguagem na fase da expressão conceptual (idade adulta).
Roman Jakobson (34), relacionando as funções da linguagem com os fatores da comunicação, vê o princípio diferenciador da poesia lírica na predominância emotiva, orientada para a expressão do subjetivismo do emissor; o do gênero narrativo na preferência para a função referencial, orientada para o contexto objectual; o da poesia dramática na marcação da função conativa, orientada para o destinatário. Tal distinção está baseada no fato de que algumas espécies de obras literárias focalizam a pessoa que fala, o eu do narrador (formas líricas); outras a pessoa a quem se destina a mensagem, o tu do receptor (formas dramáticas); outras a pessoa de quem se fala, o ele do enunciado (formas épicas e romanescas).
Essas e outras considerações que poderiam ser feitas sobre a natureza dos gêneros literários são de grande auxílio para a análise e a interpretação de uma obra. Todavia, não podemos esquecer que a pureza dos gêneros foi um mito da estética clássica. Em verdade, qualquer texto literário contém elementos de narratividade, de liricidade e de dramaticidade: num romance podemos encontrar momentos líricos ou dramáticos; no script de uma peça teatral há a presença de uma história ficcional; o poema lírico pode conter uma mini-história (no caso da balada, por exemplo) ou o diálogo dramático entre o eu poemático e uma personagem. A classificação de uma obra num determinado gênero, portanto, está baseada no critério da predominância e não na exclusividade. Dizemos que o poema Os Lusíadas pertence ao gênero narrativo porque é uma obra que, embora composta em versos, apresenta o predomínio dos elementos da narratividade (a essência do poema épico de Camões é a narração da viagem de Vasco da Gama em busca do caminho marítimo para Índia), sem prejuízo da presença de momentos líricos ou dramáticos.
No estudo do processo genético de um gênero literário, podemos distinguir, do ponto de vista diacrônico, três fases, correspondentes aos arquétipos da vida: nascimento, maturidade e morte ou transformação. Quando um gênero literário chega ao apogeu, ele é canonizado, proposto como modelo digno de ser imitado, tornando-se um clássico no sentido etimológico do termo. Daí, pelas constantes repetições, pelas sucessivas reproduções, criam-se automatismos e estereótipos que provocam o desgaste e a perda de sua original força criadora, levando-o paulatina e inelutavelmente para a etapa final de sua vida, que é o desaparecimento, a mudança de funções ou a transformação num novo gênero ou numa nova forma literária. É o que aconteceu, como já acenamos, com a passagem da poesia épica para o romance. Portanto, devido ao aspecto evolutivo das formas literárias, o princípio orientador da divisão em gêneros deveria ser o recorte sincrônico, porque não existem gêneros eternos. Constatamos a existência de gêneros literários com base na observação das obras produzida em determinados períodos históricos, que apresentam homologias de forma e de conteúdo.
Em vista da função prática da divisão da literatura em gêneros, achamos que deve ser mantida a distinção tradicional entre poesia e prosa, não porque restrinjamos a poeticidade ao texto versificado, mas porque, quanto ao aspecto formal, existe substancial diferença entre os dois modos de poetar. A poesia, stricto sensu, caracteriza-se pelo ritmo da repetição: verso, do latim versus, significa para trás, retorno, pois o poeta volta sobre os mesmos fonemas (rima e aliteração), o mesmo número de sílabas (metro) o mesmo ritmo (acento), a mesma ordem de disposição das palavras (quiasmo). A prosa, pelo contrário, segue o ritmo da continuação: do latim prorsus, indica o andar para frente, usando um discurso lógico, sem interrupção, em que há perfeita coincidência entre a pausa fônica e a pausa semântica.
Segundo releva Roman Jakobson (34), enquanto a poesia faz largo uso da capacidade metafórica, operando no campo associativo ou da seleção, a prosa dá preferência à metonímia, atuando no eixo da contiguidade. Isso explicaria por que a estética romântica e simbolista privilegia o culto da poesia versificada, enquanto a estética do realismo se realiza quase exclusivamente na obra em prosa. Ultimamente, têm-se separado a teoria e a análise literária em dois campos: um que trata da poética do verso (nível óptico, fônico, lexical, sintático, semântico, com o estudo das figuras de estilo que envolvem o poema); outro da poética da prosa (foco narrativo, trama, personagens, tempo, espaço e outros elementos estruturais mais específicos do romance).
Teoria dos movimentos
Os compêndios de história e de teoria costumam dividir as obras da literatura ocidental, produzidas desde Homero até nossos dias, em três idades ou eras, cada qual subdividida em épocas ou períodos: Era antiga (do século V a.C. ao V d.C.: período grego, alexandrino, romano, cristão); Era medieval (do século V ao XV) e Era moderna (período renascentista, barroco, romântico, realista, simbolista, modernista, contemporâneo).
Mas essa divisão é discutível, pois dá margem a vários equívocos. Por exemplo, quando se fala da Idade Média como época das trevas, não podemos esquecer que nesse período foram produzidas obras de um valor estético e humano incalculável: a poesia trovadoresca, a novela de cavalaria, os cantos épicos nacionais (La Chanson de Roland, El Cantar de Mio Cid, Os Nibelungos), A Divina Comédia de Dante Alighieri, a lírica de Petrarca, os contos satíricos de Boccaccio. É preciso, pois, distinguir a primeira fase da Idade Média, que vai da queda do Império Romano do Ocidente (século V) ao início das Cruzadas (século XI), quando realmente houve obscurantismo provocado por uma paralisia cultural que acometeu a Europa por mais de seis séculos (os motivos deste atraso não cabe aqui discutir). Já a segunda fase da Idade Média, que vai do século XI ao XV, é considerada uma pré-Renascença.
Na verdade, a tese de Arnold Hauser, defendida na importante obra História Social da Literatura e da Arte (33), de que o início da Era Moderna deveria ser recuado por uns três séculos, fazendo-o coincidir com as primeiras manifestações literárias das línguas neolatinas e anglo-saxônicas, tem muito fundamento. Por esse prisma a Idade Média, reduzida apenas à primeira fase, seria realmente mediana, acusando o vazio cultural que se deu durante a longa passagem da civilização greco-romana ao surgimento das línguas nacionais nos vários países da Europa. O conceito de “moderno”, nas línguas assim como nas culturas, estaria em contraste apenas com “clássico”, expressão da mundividência grega e latina. O que não pode acontecer é confundir a era moderna com a época do chamado modernismo brasileiro. Tal denominação se originou da famosa Semana da Arte Moderna, ocorrida na cidade de São Paulo em 1922, quando um grupo de poetas e pintores promoveu um movimento de renovação cultural, adaptando à realidade brasileira inovações estéticas trazidas da Europa. A crítica literária brasileira começou a falar, então, de autores pré-modernistas ou pós-modernistas sem muito critério, pois o conceito de moderno é temporal e não estético. Talvez seja para evitar tais confusões terminológicas que os críticos europeus não usam a denominação de modernismo, chamando a produção artística do século 20 de literatura de “vanguarda”, individualizando as várias correntes estéticas: futurismo, expressionismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo.
Na verdade, a divisão da literatura em períodos é problemática. Notamos a ausência de critérios rigorosos para a determinação das épocas: ora se recorre a rótulos políticos (época vitoriana), ora a fases históricas (século 20, geração de 30), ora a um momento cultural abrangente (renascença), ora a um estilo das artes plásticas (rococó), ora a uma denominação estritamente literária (arcadismo). A confusão deriva do fato de que as tradicionais histórias das literaturas não tratam somente de obras especificamente literárias, mas englobam quase todas as atividades humanísticas das várias épocas. São mais histórias da civilização de um povo do que de sua literatura, não distinguindo os poetas dos literatos. Sob este aspecto, explica-se porque Benedetto Croce separa a literatura, que teria uma função cultural ampla, da poesia, expressão artística de um sentimento individual. Enquanto a arte é eterna, atemporal, a cultura, circunscrita a um tempo e a um espaço, pertence ao reino da mudança.
Não querendo polemizar com o citado erudito italiano, queremos ressaltar que um texto poético é composto sempre de um misterioso entrelaçar-se de historicidade e de originalidade. Segundo Wehrli (44, p. 146), a história não aparece mais como evolução, mas como estratificação, pois todas as épocas estão presentes contemporaneamente. A filosofia existencialista ensina que na obra de arte o ser genuíno é possível não como criação nova, mas apenas como repetição: as grandes obras, os espíritos privilegiados, estendem a mão acima dos tempos e, no fundo, dizem todos a mesma coisa, embora de forma diferente.
Tentando apresentar uma definição, podemos considerar que um período literário é constituído por um conjunto de obras, espacial e temporalmente delimitado, que se caracteriza, no plano da expressão, por um sistema de normas e cânones estéticos e, no plano do conteúdo, por um complexo de ideias indicadoras de uma cosmovisão. Individualizar e descrever uma época literária, portanto, implica conhecer seu sistema de normas estéticas e seu código ideológico, rastreando sua origem, sua evolução e sua transformação. Um período literário surge em oposição ao imediatamente anterior. O romantismo, por exemplo, surge em oposição ao neoclassicismo, retomando motivos artísticos e espirituais do medievalismo. Os períodos literários possuem zonas de interpenetração e as datas demarcadoras não têm um valor absoluto, mas são apenas balizas indicativas da passagem de um período para o outro.
O processo de evolução da literatura é lento e gradativo, seguindo um ritmo dialético: a tese é constituída pelo nascimento de formas novas, aptas a expressar uma diferente visão da realidade; a antítese é a afirmação consciente, o estágio de maturidade desse novo sentir, expresso por um sistema de normas em oposição ao código artístico e ideológico do período anterior; a síntese é determinada pela transformação num novo período: as formas literárias de uma época, chegando ao apogeu, cristalizam-se, criam automatismos, e a consequente repetição de estereótipos estéticos e espirituais privam as produções artísticas de seu caráter de originalidade e de novidade.
A fase dos epígonos de um período conjuga-se com a fase dos precursores do período seguinte. A consciência da mudança distingue, a nosso ver, o movimento do período ou época. Assim, por exemplo, o romantismo, além de uma época, é também um movimento cultural, porque seus expoentes, filósofos, artistas e poetas, tiveram o propósito de opor-se ao complexo estético-cultural do classicismo. Já o barroco não pode ser considerado um movimento, porque não houve consciência de oposição à estética renascentista.
O método comparativo
Num sentido amplo, a figura da comparação, entendida como a relação entre dois ou mais elementos, é a base de qualquer conhecimento. Só se pode aprender comparando. Sem a existência de um segundo termo não haveria predicação, pois não poderia se afirmar coisa alguma. Dizer, por exemplo, que Maria é bonita, alta, magra ou inteligente implica a existência de outras moças que não possuem tais atributos. Todo o saber, pois, repousa em estabelecer semelhanças e diferenças e qualquer processo de análise, quer no campo das ciências quer das artes, opera encontrando relações de conjunção e de disjunção entre elementos. O primeiro método moderno e científico para o estudo das línguas foi a linguística comparada de Humboldt.
No sentido estrito, aplicado ao estudo das obras de arte literária, o método comparativo pode constituir-se numa disciplina à parte, chamada de Literatura Comparada. O fundador dessa disciplina foi Paul Van Tieghem com a publicação da obra La Littérature Comparée, em 1931. Seu raio de ação é muito vasto, podendo investigar relações de homologias entre várias obras, diferentes autores, diversos gêneros e movimentos literários. Na maioria dos casos, os estudos comparativos procuram descobrir as influências que alguns autores exercem sobre outros. Assim, por exemplo, se tem estudado muito as influências dos humoristas ingleses (Dickens, Sterne) e alemães (Heine) para explicar o estilo irônico que caracteriza a ficção de Machado de Assis.
O sonho de encontrar os sinais de um cosmopolitismo literário remota à época romântica: a Weltliteratur, de Goethe; o Homo universalis, de Madame de Stäel e de Chateaubriand; o diacronismo dialético (o tempo como força viva do passado agindo no presente), de Schlegel. O primeiro trabalho sobre o assunto talvez seja a obra “Sobre a origem dos progressos e do estado atual de qualquer literatura”, publicada em 1799, pelo jesuíta espanhol refugiado na Itália, Juan Andrés, que sustenta a tese da existência de uma literatura geral ou universal.
À margem dessas questões teóricas, na prática, o método comparativista funciona muito bem para distinguir os elementos comuns a várias obras (o que possibilita a determinação de gêneros e épocas literárias) dos elementos específicos de cada texto (o que salva a individualidade artística). Sem negar as diferenças estruturais e semânticas que conferem o caráter de unicidade a uma obra literária e fazem com que a distingamos de outras obras da mesma época, gênero ou autor, é possível e necessário que se encontrem os elementos comuns que a insiram num contexto cultural. Pelo próprio conceito de estrutura, a diversidade só pode ser encontrada com base na análise da unidade de traços característicos. Não podemos estabelecer a diferença específica sem antes termos captado a semelhança genérica. Posto como hipótese, se existisse uma obra literária que não partilhasse com outros textos artísticos semelhanças de formas e de conteúdos, tal obra, além de inclassificável, seria incompreensível.