Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Cantos da solidão/Invocação
O’ tu, que ora nos tergos da montanha
Nas azas do Aquilão passas rugindo,
E pelos céos entre bulcões sombrios
Da tempestade o plúmbeo carro guias,
Ora suspiras na mudez das sombras
Manso agitando as invisiveis plumas,
E ora reclinado em nuvem rosea,
Que a briza embala no ouro do horizonte,
Expandes no ether vagas harmonias,
Voz do deserto, espirito melodico
Que as cordas vibras d’essa lyra immensa,
Onde resoão mysticos hosannas,
Que inteira a creação a Deos exalça;
Salve, ó anjo ! — minha alma te sauda,
Minha alma que, a teu sopro despertada,
Murmura, qual vergel harmonioso
Pelas brizas celestes embalado......
Salve, ó genio dos desertos,
Grande voz da solidão,
Salve, ó tu, que aos céos exalças
O hymno da creação!
Sobre nuvem de perfumes
Te deslisas sonoroso,
E o rumor de tuas azas
E’ hymno melodioso.
Que celeste cherubim
Te deu essa harpa sublime,
Que em variados accentos
As dulias dos céos exprime?
Harpa immensa de mil cordas
D’onde em caudal, pura enchente,
Estão suaves harmonias
Transbordando eternamente?!
De uma corda a prece humilde
Como um perfume se exhala
Entoando o sacro hosanna,
Que do Eterno ao throno se ala;
Outra como que prantêa
Com voz funebre e dorida
O fatal poder da morte
E as amarguras da vida;
N’esta brando amor suspira,
E lamenta-se a saudade;
Nest’outra ruidosa e ferrea
Trôa a voz da tempestade.
Carpe as mágoas do infortunio
De uma a voz triste e chorosa,
E só geme sob o manto
Da noite silenciosa.
Outra o hymno dos prazeres
Entôa lêda e sonora,
E com canticos festivos
Sauda nos céos a aurora.
Salve, ó genio dos desertos,
Grande voz da solidão,
Salve, ó tu, que aos céos exalças
O hymno da creação!
Sem ti o mundo jazêra
Inda em lugubre tristeza,
E o horror do cháos reinára
Sobre toda a natureza;
Pela face do universo
Funerea paz se estendêra,
E o mundo em mudez perenne
Como um tumulo jazêra
Sobre elle então pousaria
Silencio torvo e sombrio,
Como um sudario cobrindo
Um cadaver quedo e frio.
De que servíra essa luz
Que abrilhanta o azul dos céos,
E essas côres tão mimosas
Que tingem da aurora os véos?
Essa risonha verdura,
Esses bosques, rios, montes,
Campinas, flôres, perfumes,
Sombrias grutas e fontes?
De que servíra essa gala,
Que te enfeita, ó natureza,
Se adormecida jazêras
Em estupida tristeza?
Se não houvesse uma voz,
Que erguesse um hymno de amor,
Uma voz que a Deos dissesse
— Eu vos bemdigo, ó senhor!
Do firmamento nos ceruleos paramos
Sobre o dorso das nuvens balouçado,
Os olhos arroubados espraiando
Nos longes vaporosos
Dos bosques, das remotas serranias,
E dos mares na turbida planicie,
Cheio de amor contemplas
De Deos a obra tão formosa e grande,
E em melodico adejo então pairando
A’ face dos desertos,
De caudal harmonia as fontes abres;
Como na lyra que pendente oscilla
No ramo do arvoredo,
Roçadas pelas auras do deserto,
As cordas todas susurrando echôão,
Assim ao sopro teu, genio canoro,
De jubilo palpita a natureza,
E as vozes mil desprende
De seus eternos, mysticos cantares:
E dos horrendos brados do oceano,
Do rouco ribombar das cachoeiras,
Do rugir das florestas seculares,
Do querulo murmurio dos ribeiros,
Do fremito amoroso da folhagem,
Do canto da ave, do gemer da fonte,
Dos sons, rumores, maviosas queixas,
Que povoão as sombras namoradas,
Um hymno teces magestoso, immenso,
Que na amplidão do espaço murmurando
Vai unir-se aos concertos ineffaveis
Que na limpida esphera vão guiando
O gyro infindo, e mysticas choréas
Dos rutilantes orbes;
Flôr, que se enlaça na eternal grinalda
De celeste harmonia, que incessante
Se expande aos pés do Eterno!...
Tu és do mundo
Alma canora,
E a voz sonora
Da solidão;
Tu harmonisas
O vasto hymno,
Almo e divino
Da creação;
És o rugido
D’alva cascata
Que se desata
Da serrania;
Que nas quebradas
Espuma e tomba,
E alto ribomba
Na penedia;
És dos tufões
Rouco zunido,
E o bramido
Da tempestade;
Voz da torrente
Que o monte atrôa;
Trovão, que echôa
Na immensidade.
Suspira a noite
Com teus accentos,
Na voz dos ventos
És tu quem gemes;
A’ luz da lua
Silenciosa,
Na selva umbrosa
Co’a briza fremes;
E no oriente
Tua voz sonora
Desperta a aurora
No roseo leito;
E toda a terra
Amor respira.:
— De tua lyra
Magico effeito!
E quando a tarde
Meiga e amorosa
Com mão saudosa
Desdobra os véos,
Tua harpa aerea
Doce gemendo
Lhe vai dizendo
Um terno adeos!
Sentado ás vezes no alcantil dos montes
Masculos sons das cordas arrancando
A tempestade invocas,
E á tua voz os aquilões revoltos
A desfilada ruem,
E em seu furor uivando encarniçados
Lutão, forcejão, como se tentassem
Arrancar pelas bases a montanha!
Alarido infernal atrôa as selvas,
No monte ronca a turva catadupa,
Que por sombrios antros despenhada
Ruge tremendo no profundo abysmo;
Igneo surco em súbitos lampejos
Fende a lugubre sombra, — estala o raio,
E os échos pavorosos ribombando
As celestes abobadas atroão;
E a tempestade as azas rugidoras
De monte a monte estende,
E do trovão, do raio
A voz ameaçadora,
A furia atroadora
Dos euros turbulentos,
Das selvas o rugido,
Da catarata o ronco,
O baque de alto tronco,
A luta de mil ventos,
Dos vendavaes revoltos
Os pavidos bramidos,
Dos combros alluidos
O horrido fracasso,
E do bulcão, que abre
A rubida cratera,
A voz, que estruge féra
Nas solidões do espaço,
Do rabido granizo
O estrondo, que susurra
Nas broncas serranias,
E o ribombar das vagas
Nas oucas penedias,
E todo esse tumulto,
Que em musica horrorosa
Trôa, abalando os eixos do universo,
São échos de tua harpa magestosa!!
Porém silencio, ó genio, — não mais vibres
As bronzeas cordas, em que bramão raios,
Pregoeiros da cólera celeste:
Mostra-me o céo brilhando azul e calmo
Como a alma do justo, e sobre a terra
Estende o manto amigo do socego.
Deixa errar tua mão nos aureos fios,
Onde sôes desferir molles cantigas
A cujos sons se embala a natureza
Em extase suave adormecida.
E solta a susurrar por entre as flôres
Inquieto bando de lascivos zephyros:
Que por seu meigo halito afagada
A selva balancêe harmoniosa
Sua virente cupola, exhalando
Entre perfumes namorados quebros,
E de sinistras nevoas destoucando-se
No diafano azul dos horizontes
Banhados de luz meiga, os montes surdão.
Quando sem nuvens, placida, festiva,
Tão bella assim, resplende a natureza,
Me parece que Deos do excelso throno
Um sorriso de amor á terra envia,
E como n’esses dias primitivos,
Lá quando ao sopro seu omnipotente
Formosa a creação do cháos surgia,
Nas obras suas se compraz ainda.
Vem pois, Anjo canoro do deserto,
D’esta harpa a Deos fiel roça em teu vôo
As fibras sonorosas,
E d’ellas fuja um hymno harmonioso
Digno de unir-se aos mysticos concertos,
Que echôão nas espheras,
Hymno banhado nas ardentes ondas
De santo amor, — que com sonoras azas
Em torno a Deos susurre.
Erga-se a minha voz, inda que debil,
Qual ciciar da canna, que palpita
Ao sopro de uma aragem!...
Queime-se todo o incenso de minh’alma,
E em ondas aromaticas se expanda
Aos pés do Omnipotente!...