Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Cantos da solidão/O destino do vate
Entretanto não me alveja a fronte, nem minha cabeça pende ainda para a terra, e comtudo sinto que hei pouco de vida.
Em manso adejo o cysne peregrino
Passou roçando as azas pela terra,
E sonorosos quebros gorgeando
Despareceu nas nuvens.
Não quiz mesclar do mundo aos vãos rumores
A celeste harmonia de seus carmes;
Passou — foi demandar em outros climas
P’ra suas azas mais tranquillo pouso,
Ares mais puros, onde espalhe o canto;
Onde foi elle — em meio assim deixando
Quebrado o accento da canção sublime,
Que apenas encetára?
Onde foi elle? em que felizes margens
Desprende agora a voz harmoniosa?
Estranho ao mundo, n’elle definhava
Qual flor, qu’entre fraguedos
Em solo ingrato langue esmorecida:
Uma nuvem perenne de tristeza
O rosto lhe ensombrava — parecia
Seraphim exilado sobre a terra,
Da harpa divina tenteando as cordas
P’ra mitigar do exilio os dissabores.
Triste poeta, que sinistra idéa
Pende-te assim a fronte empallecida?
Que dôr fatal ao tumulo te arrasta
Inda no viço de teus bellos annos?
Que accento tão magoado,
Que lacera, que dóe no seio d’alma,
Exhala a tua lyra,
Funereo como um écho dos sepulcros?
Tua viagem começaste apenas,
E eis que já de fadiga extenuado
C’o desanimo n’alma te reclinas
A’ margem do caminho?!
Olha, ó poeta, como a natureza
Em torno te desdobra
Sorrindo o seu painel cheio de encantos:
Eis um vasto horizonte, um céo sereno,
Serras, cascatas, ondeantes selvas,
Rios, collinas, campos de esmeralda,
Aqui valles de amor, vergeis floridos,
De frescas sombras perfumado asylo,
Além erguendo a voz ameaçadora
O mar, como um leão rugindo ao longe,
Alli dos montes as gigantes fórmas
Com as nuvens do céo a confundir-se,
Desenhando-se em longes vaporosos.
Donoso quadro, que me arrouba os olhos,
N’alma acordando inspirações saudosas!
Tudo é belleza, amor, tudo harmonia,
Tudo a viver convida,
Vive, ó poeta, e canta a natureza.
Nas sendas da existencia
As flôres do prazer ledas vicejão;
A’ mesa do festim vem pois sentar te,
Sob uma corôa de virentes rosas
Vem esconder os prematuros sulcos,
Vestigios tristes de vigilias longas,
De austero meditar, que te ficárào
Na larga fronte impressos.
Dissipe-se aos sorrisos da belleza
Essa tristeza, que te abafa a mente.
Ama, ó poeta, e o mundo que a teus olhos
Um deserto parece arido e feio,
Sorrir-se-ha, qual horto de delicias:
Vive e canta os amores.
Mas se a dôr é partilha de tua alma,
Se concebeste tedio de teus dias
Volvidos no infortunio:
Que importa, ó vate; vê pura e donosa
Sorrir-se a tua estrella
No encantado horizonte do futuro.
Vive e soffre, que a dôr co’a vida passa,
Emquanto a gloria em seu fulgor perenne
No limiar do porvir teu nome aguarda
Para envial-o ás gerações vindouras.
E então mais bellos brilharáõ teus louros
Entrançados co’a palma do martyrio;
Vive, ó poeta, e canta para a gloria.
Porém — respeito a essa dôr sublime —
Sello gravado pela mão divina
Sobre a fronte do genio,
Não forão para os risos destinados
Esses labios severos, d’onde emana
A linguagem dos céos em igneos versos;
Longe d’elle a vã turba dos prazeres,
Longe os do mundo passageiros gozos,
Breves flôres de um dia, que fenecem
Da sorte ao menor sopro.
Não, — não foi das paixões o bafo ardente
Que os ledos risos lhe crestou nos labios;
A tormenta da vida ao longe passa,
E não ousa turbar com seus rugidos
A paz d’essa alma angelica e serena,
Cujos tão castos ideaes affectos
Só pelos céos adejão.
Alentado sómente da esperança
Contempla resignado
As sombras melancolicas, qu’enlutâo
O horizonte da vida; — mas vê n’ellas
Um crepusculo breve, que antecede
O formoso clarão da aurora eterna.
Quando vem pois sua hora derradeira,
Sauda sem pavor a muda campa,
E sobre o leito do eternal repouso
Tranquillo se reclina.
Oh! não turbeis os seus celestes sonhos;
Deixai correr nas sombras do mysterio
Seus tristes dias: — triste é seu destino,
Como o luzir de moribunda estrella
Em céo caliginoso.
Tal é seu fado; — o anjo d’harmonia
C’uma das mãos lhe entrega a lyra d’ouro,
N’outra lhe estende o calix da amargura.
Bem como o incenso, que só verte aromas,
Quando se queima, e ardendo se evapora,
Assim do vate a mente
Aquecida nas fragoas do infortunio,
Na dôr bebendo audacia e força nova
Mais pura ao céo se arrouba, e accentos vibra
De insolita harmonia.
Sim — não turbeis os seus celestes sonhos,
Deixai, deixai sua alma isenta alar-se
Sobre as azas do extase divino,
Deixai-a, que adejando pelo empyrio
Vá aquecer-se ao seio do infinito,
E ao céo roubar segredos de harmonia,
Que sonorosos troem
D’harpa sublime nas mellifluas cordas.
Mas eil-a já quebrada, —
Eil-a sem voz suspensa sobre um tumulo,
Essa harpa mysteriosa, qu’inda ha pouco
Nos embalava ao som de endeixas tristes
Repassadas de amor e de saudade.
Ninguem lhe ouvirá mais um só harpejo,
Que a ferrea mão da morte
Pousou, sobre ella, e lhe abafou p’ra sempre
A voz das aureas cordas.
Porém, ó Dutra, emquanto lá no elysio
Saciando tua alma nas enchentes
Do amor e da belleza, entre os effluvios
De perennaes delicias,
E unido ao côro dos celestes bardos,
O fogo teu derramas
Aos pés de Jehovah em gratos hymnos,
A gloria tua, teus eternos cantos,
Quebrando a mudez funebre das campas
E as leis do frio olvido, com teu nome
Através do porvir irão traçando
Um sulco luminoso.