Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Evocações/Cenas do sertão
N’essas remotas solidões que habitas,
Entre essas broncas, virginaes florestas,
Onde se ouve o rugir das cataractas,
Que em catadupas furiosas roncão,
Ou da tormenta o sopro impetuoso,
Que a grenha açouta aos seculares troncos,
Ou do selvagem caçador a grita,
Que as matilhas açula atrás da onça,
Do mateiro veloz, da anta membruda, —
N’esses ermos saudosos, que comtigo
Tantas vezes, amigo, hei percorrido,
Vai hoje visitar-te a minha musa.
Vai ella só.... É pena que eu não possa
No aprazivel passeio acompanhal-a;
Eu de bom grado aos ermos a seguira.
Mas não sei que destino aqui me prende
Entre um montão de lugubres papeis,
Que como enxame de importunas vespas
Em torno me esvoação de continuo,
Folhas chamadas, — não as verdes folhas,
Que a fronte adornão das viçosas selvas,
E vertendo ao cansado viandante
Com brando rumorejo alma frescura
Dão vida ao coração, repouso á mente.
São folhas seccas, aridas, tristonhas,
Que por todos os cantos me farfalhão,
Como baratas chocalhando as azas
Entre as fendas de velho pardieiro.
Dizem no emtanto os homens entendidos
Que essas tristes folhas são as azas
Com que vôa o progresso pelo mundo...
Vivo portanto aqui immovel, quedo,
Como droga, embrulhado em papelada.
Vai pois a pobre musa, e vai sózinha
Por essas feias mattas, sem ter medo
De onças, sucurys ou jararácas,
No teu fundo retiro procurar-te.
Não vai c’roada de apollineo louro,
Nem cinge aos pés o classico cothurno,
E nem tão pouco empunha eburnea lyra
De cordas de ouro e ornada de guirlandas.
Vai, coitadinha! de chapéo de palha,
De chale sobraçado; os pés lhe amparão
Sandalias de romeira, — aos hombros leva
Um velho violão, e nos cabellos
Singelas flôres, que apanhou no campo.
E tu, a quem a prodiga natura
Creou para cantar as maravilhas
D’esse torrão feliz em que nasceste,
A quem o sol esplendido dos tropicos
N’alma ateou da inspiração a chamma,
Que fazes n’esses teus ignotos ermos,
Que o sonoroso canto não desprendes
Celebrando os encantos e as riquezas
Que a mão de Deos com profusão creára
N’esses donosos paramos infindos?...
Do lar paterno nos umbraes sentado
Contemplas mudo os vastos horizontes,
As scenas grandiosas, os prodigios,
Que em torno a natureza te desdobra,
As estranhas usanças, os costumes
Semi-selvagens d’esse povo inculto,
Que vaguêa nas ribas nemorosas
Do Parnahyba undoso e turbulento,
E de tua alma nem um écho escapa,
Nem um só canto casas aos rumores
De teus palmares, ao murmurio eterno,
Com que te embalão selvas seculares?...
Eia, amigo, desprende a lyra tua
Do ramo em que ociosa balancêa
Das solidões ao vento reboando,
E canta-nos da terra, em que nasceste,
O puro céo de nuvens esmaltado,
Que em graciosos flocos se ennovelão
De cambiantes cores irisadas;
Os çrystallinos corregos saltando
Pelo vargedo entre floridas moutas,
Dos campos seus o eterno e vivo esmalte,
As selvas magestosas, as torrentes,
Que nas profundas furnas despenhadas
O leito cavão por penedos broncos,
Os ondulosos plainos de verdura,
Onde dispersas vagão as manadas
De truculentos bois, nedias novilhas,
De variadas cores marchetando
A viçosa esmeralda das campinas.
Conta-nos como o caçador valente
No fragueiro exercicio endurecido
Lança no matto as trelas adestradas
Dos raivosos lebréos impacientes,
Que de um salto se atirão pelas brenhas,
Latindo, uivando, a demandar a pista
Da descuidada victima innocente.
Ergue as orelhas o veloz mateiro,
Que na occulta guarida estremecendo
Escuta ao longe o rabido alarido
De seus infatigaveis inimigos.
Veloz como o tufão, eil-o que aos saltos
Rompe do bosque a emmaranhada grenha,
Furnas transpõe, vallad os e tranqueiras
De tombados madeiros; — como a péla,
Que cada vez mais alto salta e vôa,
A pulos vence os alcantis agudos,
Galga barrancos, sotopõe fraguedos,
Até que de fadiga extenuado
Pelas narinas, pela aberta boca
Os ardentes arquejos exhalando
Os fumegantes flancos lhe latejão...
Porém julgando já longe o perigo
Estafado e arquejante um pouco pára,
Por um momento inquieto o ouvido applica
A consultar os échos da floresta; —
Mas ai! — inda não longe lhe resôão
Os continuos latidos da matilha,
Que encarniçada lhe não deixa a pista.
Escuta ainda; — além murmura o rio,
Que o largo veio manso desdobrando
A salvação e a vida lhe offerecem,
Que as selvas suas amparar não podem.
Nas aguas ofegante se arremessa
E afouto fende as ondas alterosas
Em demanda da opposta ribanceira.
Pobre animal! — já na sabida espera
Em ligeira canoa bordejando
O caçador o aguarda apercebido.
Não trôa um tiro, que a veloz piroga
Por vigorosos braços impellida
Nas aguas resvalando corre ao encalce
Da fatigada victima indefesa,
Que pelos galhos subito agarrada
Por mãos possantes, sente nas entranhas
Buído ferro penetrar rangendo,
E da existencia as fontes lacerar-lhe.
Num extremo balido o alento exhala,
E com seu quente sangue tinge as aguas,
Onde imprudente a salvação buscava.
Tranquillo pasce o touro corpulento,
Das manadas senhor, a relva tenra
Dos verdes chapadões. — Sultão temido,
Em meio do cornigero serralho
Ninguem lhe turba a paz, nem contrasta
O poderio que de ha largos annos
Ao longe estende nas planicies vastas.
Em mil combates já victorioso
Para longe espancou rivaes temiveis,
Que em campo aberto disputar-lhe ousárão
De sua nedia grei a posse e o mando.
Porém um dia, como o velho chefe
Os flancos mollemente reclinando
Em mimoso capim junto da fonte,
Tranquillamente ruminando as hervas
Ao sol de manhã pura se aquecia
A contemplar a numerosa tribu,
Que em torno vaga, — subito uns bramidos
Longinquos aos ouvidos descuidosos
Vêm resoar-lhe. — Por alguns instantes
Attento escuta; — após lesto se erguendo,
E sacudindo os retorcidos cornos,
Ergue a cabeça, e com torvados olhos
Percorre ao largo os chapadões immensos.
É hora de combate. — Muito ao longe
Todo envolvido em turbilhões de terra,
Que com as unhas, com as rijas pontas
Cava no chão, e arroja pelos ares,
Campêa o inimigo, e denodado
Avançando e rugindo, pouco e pouco
Do rival temeroso se avizinha.
De seu acampamento o velho chefe
Não se arreda; porém calado e quedo
Por um momento o seu rival escuta,
E quasi acreditar inda não póde,
Que haja em torno atrevido aventureiro
Que se abalance a disputar-lhe a posse
Dos campos seus, de seu gentil rebanho.
Esse inimigo audaz, que o procurava,
E a combate o chamava em campo aberto,
Era um touro novel, guapo novilho,
Que nascera e cresceu no mesmo campo,
E inda ha pouco do chefe entre a manada
Pascia os mesmos prados, e bebia
Da mesma fonte. Mas sua presença
Já inquietava ao carrancudo despota,
Que suspeitoso espreita-lhe as passadas.
Já na belleza e no vigor crescendo
O galhardo novilho se arriscava,
Se bem que a medo, a acompanhar nos bosques,
Amorosos mugidos exhalando,
Do rebanho as novilhas mais formosas.
Bem o presente o ciumento velho,
Que em partilhar de modo algum consente
Com mais ninguem delicias de um serralho,
Que conquistou co’ a ponta de seus cornos.
Ardendo em zelos, de furor raivando,
Corre a punir o temerario amante,
Que ousa a seus olhos requestar-lhe as vaccas.
Quer este resistir; — mas inda novo,
Inda não traquejado nas pelejas,
Dos campos seus nataes afugentado,
Espancado e ferido, foi ao longe
Chorar no seio das profundas brenhas
Seu infortúnio e meditar vingança.
Longo tempo vagou pelas florestas
Errante, sem rebanho e sem amores,
Com bramidos de dôr e desespero
Das solidões amedrontando os échos.
Nos rijos troncos, nos cupins annosos
Exerce e aguça as formidaveis pontas,
E nos alheios campos penetrando
Os cornos cruza em luta encarniçada
Dos arredores com os mais fortes chefes;
A uns soterra, e para longe exila
Dos campos seus vincidos e humilhados;
A outros rasga as tepidas entranhas;
Outros nos tremedaes deixa atolados,
Ou precipita em boqueirões profundos,
Aonde encontrão morte e sepultura.
Eil-o já lidador robusto e féro,
De trophéos e victorias carregado,
Terror e assombro em torno derramando,
Para vingar não esquecida affronta
Nas campinas nataes ufano surge.
Assim Cesar, a quem de Roma arreda
De ambiciosos emulos a inveja,
Depois que longo tempo confinado
Nas Gallias, entre asperrimos trabalhos
Cem batalhas venceu, domou cem povos,
Á Italia volta, o Rubicon transpõe,
O orgulhoso Pompéo enxota e vence,
E toma posse da cidade eterna.
O novel lidador avança intrepido,
Rasgando a terra, os troncos escarchando
Co’as pontas furibundas, e de estragos
Ao largo alastra os sitios em que passa.
Sem do campo arredar-se o chefe o aguarda
Junto a um velho cupim, que impaciente
Qual se fosse o inimigo ataca e rompe,
E em mil pedaços pelos ares lança,
Ou com as unhas cava fundo a terra,
Como quem ao rival, que dá por morto,
De ante-mão vai abrindo a sepultura.
A terra treme aos urros furibundos
Dos ferozes, cornigeros athletas,
Que com solemne lentidão sinistra
Pouco a pouco bramindo se approximão.
Chegados frente a frente quedos parão
Quasi sem respirar, e fito a fito,
Mudos, torvados, de revez se encarão.
De horror transida a grei muda contempla
Esse solemne e pavoroso instante,
Em que os dous ferozes contendores
Parece que um ao outro se devorão
Com torvo olhar sanguineo. —
Mas de chofre
Cruzão-se os cornos com fracasso horrendo,
Que pelas brenhas muito ao longe trôa.
Está travada a luta; — o chão retreme
Ao tropear das truculentas patas; —
As gramas das campinas arrancadas
No revolto brigar aos ares voão,
E em breve o campo ao largo se converte
Em terra nua e solta, qual se enxada
Alli passasse revolvendo o solo.
O rouco som dos cornos, que abalroâo,
O estrugido dos cascos, que retumbão
Do solo as profundezas abalando,
E esses surdos gemidos, que se exhalão
Da luta ardente no arquejar raivoso,
Medonha orchestra formão, que de susto
Mesmo as pantheras recuar farião.
Consternado o rebanho em torno corre,
Lastimosos bramidos exhalando,
E como que com rogos vãos procura
Dos combatentes acalmar a sanha.
O dia inteiro, com bem curtas tregoas
— Só para retomar um pouco o alento —
Na renhida peleja se sustentão
Sem as buídas haspas descruzarem.
Para esgotar de seu contrario as forças,
O novel campeão manhoso e arteiro
Deixa impellir-se, e cede cauteloso
De seu rival aos empurrões tremendos,
Que o leva de rondâo pelas campinas,
N’um brejo o atola, o esbarra pelos troncos,
E da victoria já quasi seguro
De um golpe extremo decidir intenta
A porfiosa, tetrica peleja;
Recúa um pouco destravando os cornos,
E as pontas abaixando se arremessa
Ao ventre do inimigo; — mas debalde
No desigual terreno em que lutavão
Por barranceiras ambos se despenhão,
E a travar-se de novo se levantão.
Já desce a noite, e as sombras, que descahem,
Estão pedindo ou tregoas ou victoria.
O novel lidador reune as forças,
Que até então de industria sopeára,
E com vigor insolito esbarrando
O estafado rival de encontro o leva
A um rijo tronco, e ennovelado o tomba.
O cahido porém presto levanta-se
E de novo o combate recomeça.
Mas ai! que já suster não póde os impetos
Com que o atropella seu rival possante.
Eis que de novo aos recuões levado
Se perde, se embaraça, e resupino
Aos pés do vencedor de novo rola.
Do irado vencedor as corneas pontas
Eil-o já sente a retalhar-lhe as carnes;
Então soltando um lugubre bramido
A custo se ergue, e rapida carreira
Fugindo estende pelos campos vastos.
O vencedor porém vai-lhe no encalce,
E por espaço largo o segue e punge
Até transpor as ultimas collinas,
E longe o exila d’esses campos, onde
Inda ha pouco no meio de manadas
Seu poderio alardeava ufano.
Ai do vencido ! — pelas fundas brenhas
A mugir e a chorar eil-o se entranha
Lascando troncos, escarvando a terra,
Como se espedaçar tentasse as armas,
Que não lhe podem mais dar a victoria.
O tempo emfim vem acalmar-lhe a furia,
E o pobre do animal, tornado eunucho,
De combates e amores esquecido,
Tranquillamente pasce entre as manadas,
E do bom lavrador jungido ao carro
Mais utilmente sua força emprega,
Até que um dia para sempre larga
Nas mãos do carniceiro o couro e a carne.
Se lhes mudais os nomes, caro amigo,
Quer já bovinos, quer humanos sejão,
E’ esta sempre a historia dos serralhos.
Rio de Janeiro, 1864.