Poesias offerecidas ás senhoras Portuenses/O Sultão Enamorado
O Sultão Aladdin.
Zalinda, a Captiva Hespanhola.
Schahriar, primeiro Visir.
Zaira, amiga de Zalinda, e amante de Schahriar.
Visires.
Um medico.
Um valido do Sultão, que chega d'Hespanha.
Ministros.
Povo.
Que m'importam as grandezas,
Que rodeam este harém,
Para que quer diamantes,
Quem liberdade não lem?..
Quem da Patria vive longe,
Sem um parente, um amigo,
Entre crença, e lei diversas,
Só d'estranhos ao abrigo !..
Quem na terra onde nasceu
Deixou alma, e coração,
Quem preza deixou a vida
Ao seu gentil infanção!..
Que m'importam as grandezas,
Que rodeam este harem,
Para que quer diamantes,
Quem liberdade não tem?..
Ah! aqui, nada recorda
A minha patria querida;
Este Cóo não é tão bello,
Aqui não ha tanta vida!
E' menos suave a briza,
As aves tem outra côr.
As flores não são tão lindas,
Aqui não ha tanto amor!..
Do Sultão vaidoso, altivo,
Que m'importam os favores?
Cada vez mais o detesto,
Aborreço os seus amores.
Eis, que elle chega! ai de mim !
- Zalinda levanta-se, e recebe o Sultão com respeito, e frieza, abaixando os olhos.
- O Sultão Aladdin aproxima-se d'ella, e com semblante risonho, e meigo, diz-lhe:
Quando, ó meu sol, minha vida,
Hade o teu pranto findar ?!
Não verei inda uma vez
Um teu riso, um meigo olhar?
E's a mais formosa flor
Que fulgura em meus harens,
E's só tu, cara Zalinda,
Que a posse d'esta alma tens!
Bellezas mil, á porfia,
Cuidam só em me agradar;
Mas nenhuma como tu
Pôde meu peito abrazar!
Como escravo os teus desprezos,
Zalinda, tenho soffrido,
Sem que jamais do poder
Abuzar tenha querido.
Cuidei, que podia o tempo
Abrandar o teu rigor;
Mas em vão tenho esperado
O mais pequeno favor.
E' tempo, linda donzella,
De findar o teu rigor;
Ah! que não posso viver,
Zalinda, sem teu amor!..
Ah! senhor, tende piedade
Da minha sorte infeliz,
Que vos désse o coração,
A minha estrella não quiz.
Na patria, que sempre choro,
Affeição, alma deixei,
E fé pura, amor eterno,
A Dom Ramiro jurei:
Já para o nosso hymineu
Tudo estava preparado,
Quando o nobre cavalleiro
Para a guerra foi chamado:
Partiu, e com elle tudo!..
Alegria, amor, ventura;
Ficaram só na minh'alma
As saudades, e a amargura!
De guerra o grito fatal
De toda a parte soou,
E o Conde, meu velho Pae,
Tudo por mim receou.
Do paiz seu em defeza,
O joven filho mandou,
Dando-lhe um adeus saudoso,
Commigo a patria deixou!
Que tormento! que saudade
O meu coração sentia!
Cada vez mais s'augmentava,
Quando Hespanha eu já não via!..
Com ventura o baixel nosso,
Algum tempo caminhou;
Mas um dia o mar irado,
De repente se agitou:
Um lufão de rijo vento
As velas, logo quebrou,
E em breve á mercè das vagas
Longo tempo navegou.
E'ra horrivel a tormenta,
D'instante a instante augmentou,
E por fim um raio ardente
O fragil lenho queimou !
Aqui, além, entre as vagas,
Todos co'a morte luclavam,
Quando os turcos um navio
Para nós aproximavam.
Dos mouros, um corajoso,
Por me salvar s'empenhou,
Porque do. meu preço o ouro
A su'alma vil lembrou!
Partilhar antes quizera
De meu pac a infausta sorte;
Hoje captiva não fora,
Era mais suave a morte!..
Podeis dar-me assaz tormentos,
Tudo firme arrostarei;
Mas a posse da minh'alma,
Oh! nunca, nunca espereis!
Zalinda mais não prosigas,
Tem d'um triste compaixão!..
Se soubesses como te amo...
Quanto soffre o coração!...
Mil vezes tentei 'squecer-te,
Para dar-te a liberdade :
Mas um só dia sem ver-te,
E'ra um seclo, a eternidade!..
A tua imagem querida
Seguia-me a toda a parte;
Não posso sem ti viver,
Em vão tentei olvidar-te!
Quiz fazer-te venturosa,
Conduzir-te ao teu amante;
Mas senti, que não podia,
Que morria n'esse instante!..
Possa, Zalinda, a piedade
Entrar no teu coração,
E mitigar os tormentos
Da minha ardente paixão!
Por um só gesto d'amor,
Para ver um teu sorriso,
Dera tudo... o meu imperio!..
Trocara até o paraizo!
Renegára o meu propheta,
Crença, lei, e Alcorão;
Deixara tudo por ti,
Dando-me o teu coração!..
Dize uma vez. que me amas,
Uma só, por piedade;
Dá-me a ventura celeste,
A vida, a felicidade!
Foste o meu primeiro amor,
Minha primeira affeição;
Tu és alma da minh'alma,
Vida do meu coração!
Deixa a tua fronte bella
Um diadema adornar.
E sobre um throno aurifero,
Ao lado meu te assentar.
Este amor, que m'inspiraste,
E' immenso, puro, e fórte,
Não cabe dentro no peito,
E terá fim só co'a morte!..
Ah! Senhor, uma alma pura,
Uma só vez póde amar;
Dou-vos affeição d'irmã,
Nada mais vos posso dar!
E pensas, que ao meu amor,
Basta só essa affeição?
Quando extinguir já não posso
O fogo desta paixão?
Como vós tambem eu sinto
Abrazar-se o coração,
Tambem ámo com extremo
O meu gentil infanção!..
Só por elle sinto amor,
A mais ardente paixão!
E vós, ah! nunca espereis
Ganhar o meu coração !
Zalinda! cruel Zalinda!
Déste a sentença fatal !..
Vae por termo á minha vida,
N'um momento este punhal!..
Tira o Sultão com rapidez o punhal e o crava no peito. Zalinda, gritando espavorida, corre ao principe, que está cahido sem acordo, e lhe tira do peito o punhal tinto de sangue ; acóde muita gente movida pelos seus brados, e vendo-a ainda com o punhal na mão, accusão-na de ter assassinado o Sultão. Zaira, amiga de Zalinda, que acudiu tambem, e que julga Zalinda incapaz de semelhante crime, aproxima-se d'ella, e Zalinda, vendo, que é accusada, cae desmaiada nos braços de Zaira.
Dous coros d'homens, e mulheres, vestidos á oriental, cantam acompanhados pela orquestra os versos seguintes:
Morra a infame regicida,
Na prizão seja encerrada,
Que soffra morte affrontosa,
Depois de ser torturada.
Ah! quanto sou desditósa!
Meu tormento acaba, ó sorte!
Da vida tira-me o pezo,
E dá-me allivio na morte!..
- Zaira entra, e aproxima-se de Zalinda.
Doce amiga, ó minha Zaira,
Que vens tu aqui fazer?!
Dar-te novas d'alegria,
Dizer-te, que has de viver.
Viver... que m' importa a vida!..
Vida de pranto, e saudade!
Para mim tudo acabou,
'Spero só na eternidade!..
Longo tempo, sem acordo,
'Steve o mouro desgraçado;
Mas voltou de novo á vida,
Que o par'cia ter deixado:
Mal ferido estava o triste,
Febre ardente o devorava,
E de momento a momento,
Par'cia que se finava!
Delirante, por Zalinda
Só chamava a cada instante;
Onde está? dizia o triste,
Quero ver a minha amante!
Os seus dias queira o Céo
Longo tempo prolongar:
Cheios de gosto e ventura,
Sem um só leve pezar.
Com extremo sou amada,
Pelo Visir Schahriar,
E do principe os amores
Em breve lhe you narrar.
Tu' alma pura, innocente,
Eu lhe farei conhecer:
E perante o mundo inteiro
Elle le irá defender.
Mas se perêce o Sultão,
Sem a razão recuperar?
E' quem junto ao solio manda
O pod'roso Schahriar.
Nas mãos suas o poder
O Sultão depositou,
E na conquista d'amor
Só o Principe cuidou.
Não procures defender-me,
Anciósa espero a morte!
Se viver, só novas penas
Me dará o fado, a sorte!
Zalinda, tua innocencia
Vae em breve ser provada;
Adeos (ahi vem os ministros)
Em mim fica esperançada.
- Dize a idade, a patria e nome?
Quatro lustros tenho apenas,
E' o meu nome Zalinda;
Sou christã desventurada,
Nasci lá na Hesperia linda.
Como conceber pudeste
Um crime tão horroroso,
Tentando assassinar
O sultão, joven, bondoso?!
Na dextra o ferro homicida,
Envolto tinhas em sangue,
E junto a ti, sem acordo,
Jazia o Principe exangue!
Vae esse teu crime enorme
Punido ser com rigor:
Para ti não ha piedade,
Tu só inspiras horror!
A morte, dos infelizes
E' o allivio, a ventura;
N'ella só 'spero que findem
Meus pezares, e amargura:
Deus só pode defender-me,
Minha innocencia mostrar,
Se um momento inda o Sultão,
A razão recuperar.
Mais nada em defeza minha
Tenho, Senhor, a allegar,
E para a morte ou martyrio
Me veréis resignar!
Da christã o julgamento,
Manda o Visir Schahriar,
Que é forçoso suspender,
O tempo, que elle ordenar.
O povo, ouvindo o que se dizia, mostra-se indignado, e em coro, acompanhados pela orchestra, cantam os versos seguintes:
Morra a traidora christă,
Que ao Sultão quiz dar a morte!
Soffra em breve, sem piedade,
Das leis o castigo forte!
Retiram-se todos, e entra Zaira, e logo apóz ella Schahriar.
Cumpridos teus dezejos são, ó Zaira,
Só escuta minha alma a voz d'amor ;
Embora contra mim o povo irado,
Se conspire irritado, com furor!
Deveres, lei, razão, ah! que sois vós,
Quando no coração amor impéra ? !
Se injustiças de mim té exigiras,
Talvez para agradar-te, eu as fizera!..
Nem era d'esperar, que á vossa Zaira,
Deixasseis de cumprir um só favor;
Mas quem pela virtude intercedeu,
Jámais quiz abusar do vosso amor.
Ouvem ao longe o poro em desordem, que repete em côro os versos antecedentes.
Morra a traidora christã,
Que ao Sultão quiz dar a morte,
Soffra em breve, sem piedade,
Das leis o castigo forte !
E' forçoso ordens severas
A esse povo ir dar,
E dize á bella captiva,
Que pode em mim confiar.
Adeos, Zaira, meus amores,
Dona do meu coração;
Não olvides quem só pensa
Em te ganhar a affeição.
Apparece o Sultão recostado em um rico sofá, e em delirio diz o seguinte:
Oh! nunca mais a verei!
Foi um sonho o meu amor,
Um sonho, que ao despertar,
Acabou em pranto, e dôr!..
Foi um Anjo, que passou,
Sobre o mundo de tormento;
Eu a vi ao Céo voar,
Desapar'cer n'un momento!
Já não érra sobre a terra ?
Não, que nos Céos a diviso ;
Mais formosa, que as estrellas,
Quanto é meigo o seu sorriso!
C:omo os Anjos a saudam !
Como ufanos 'stão com ella!
Tão lindos elles não são,
E' mais gentil a donzella!
Despontava o meu Sol, só refulgia,
Quando ledo a podia contemplar:
Fazia-me na terra desfructar
As delicias do Céo pura alegria!
Cala-se o Sultão, e se dirige a elle um medico, que depois de o analysar, diz para os Visires, que estão um pouco afastados:
A febre diminuiu,
O delirio terminou.
E nos braços de Morpheu
Um momento s'entregou.
Desperta o Sultão, e passando a mão pela fronte, diz suspirando:
Onde está d'Hespanha a flor?
Quero ver a minha amante!
De ventura inda dezejo,
Fruir um ligeiro instante.
Senhor, a infeliz captiva,
Na prizão foi encerrada,
Para de seu crime enorme
Com rigor ser justiçada!
O Principe, horrorisado, diz:
Imprudentes! que fizestes?!
Sim; tudo já comprehendi!..
De Zalinda a desventura,
Indiscreto, não previ!
Da christã enamorado,
Jámais a pude veneer,
E d'amor louco por ella,
Resolvi então morrer!
Zalinda, ah! quero vel-a,
Vão já dar-lhe a liberdade;
Ai, da triste que seria,
Se eu fôra na eternidade?...
Zalinda chega da prizão, acompanhada por Zaira, e vem vestida de preto, muito pallida, e abatida; aproxima-se do Sultão, e o fixa compassiva, e elle contemplando-a em silencio, e deixa cahir a cabeça desmaiando. Zalinda ajoelha a seu lado, e levanta. os olhos, e mãos para o Céo.
Entra nesto tempo Schahriar, que se aproxima de Zaira, que estava um pouco affastada, e ella lhe narra o que tinha passado, da maneira seguinte:
Já do Gran-Senhor as ordens
Deram pressa a executar,
E a christã innocentinha
Foram logo libertar :
Do principe o rosto exangue,
Ao vel-a já so animou;
E teve abalo tão forte,
Que seu mal inda augmentou!
Outra vez a desmaiar
O mancebo começou.
Foi então quando Zalinda,
Sua belleza notou!
Foi aquella a vez primeira
Que a donzella o contemplou,
E que int'resse, e compaixão,
A' su'alma elle inspirou!
Quem sabe ?.. O Sultão talvez
Por ella seja inda amado;
Póde ser, que inda possua
Esse amor tão desejado!...
Zalinda conserva-se inda de joelhos, junto ao Sultão, e orando por elle, exclama:
Oh meu Deus! velai por elle,
Chámai á vida Aladdin,
Que inda seja venluroso,
Venha a morte para mim!
O Sultão, voltando a si do desmaio, ouve a exclamação de Zalinda, e sorri, mostrando um semblante alegre. Zaira, que tinha estado voltada para o lado do principe, e o tinha analysado, diz para Schahriar:
Exultou d'amor, ventura,
Quando ao lado seu a viu;
Nas faces correu-lhe o pranto,
E para a joven sorriu.
O Sultão, chamando por Zalinda, diz-lhe:
E's tu, Zalinda, ou é sonho,
Quanto meus olhos 'stão vendo?!
E' verdade o que teus labios
Ha pouco estavam dizendo?...
O meu nome proferiste,
Quando oravas ao Senhor;
Tiveste de mim piedade,
Cessou emfim teu rigor!
Deos te pague, Anjo do Céo,
A ventura que me déste,
Que de novo amar a vida,
Tu, querida, me fizeste.
Entra um valido do Sultão, que acaba de chegar d'Hispanha, e aproximando-se delle, lhe diz:
De Hispanha na bella corte,
Fiz, Senhor, o que mandastes,
E novas de D. Ramiro
Vos trago como ordenastes.
Zalinda mostra grande sobresalto ao ouvir o nome de D. Ramiro, seu amante.
O valido prosegue:
Da illustre, gentil donzella,
Os castellos procurei,
E ao conde, seu nobre irmão,
Em D. Ramiro fallei:
O conde do moço ousado
A historia triste narrou;
Dizendo, que de Mavorte,
Lá no campo se finou!
Que escuto?! Desventurada!
Para mim tudo acabou!
Té a flor da doce esp'rança,
Essa mesmo já murchou!..
Sinto a vida já esvair-se!
Ah! succumbo á dor tão forte,
A luz me foge, e já sinto
A mão pezada da morte!...
Zalinda, ao dizer o ultimo verso, cáe exhausta e morre.
O Sultão levanta-se, e corre junto a Zalinda, que está nos braços de Zaira, e um medico chegando-se tambem a ella, e depois de a analysar, diz para o Sultão:
Fugiu-lhe da vida o sopro,
Já não existe Zalinda!
Já não vive, e eu, desgraçado,
Soffro esta existencia ainda!..
O Sultão, apontando para Zalinda, diz:
A estrella, que me guiava,
Já não luz, já se apagou ;
Para sempre a dura morte,
Sem piedade a eclypsou!
Depois ajoelha junto a Zalinda, e levando-lhe uma mão ao coração, diz:
Esta vida, que viver
Sem a tua não podia,
Junto a ti vem extinguir-se,
Findemos ambos n'um dia!...
O Sultão morre junto da sua amante, quando acaba de dizer o ultimo verso.