Poesias posthumas do Dr. Aureliano José Lessa/Aureliano Lessa
As breves linhas que vou traçar a respeito de Aureliano José Lessa, não são uma biographia, nem a isso podem ter pretenção. Fallecem-me os dados indispensaveis para contar por miüdo a vida do illustre poeta diamantino, tomando-a desde o berço e acompanhando-a passo a passo até o tumulo.
Fui companheiro e amigo do poeta durante a vida academica; marchei por alguns annos de par com elle em sua curta peregrinação por este mundo. Tive pois tempo bastante e occasiões de sobra para conhecer-lhe a indole e os costumes, as tendencias de seu espirito, o quilate de seu talento superior e as bellas qualidades que lhe adornavam o nobre e generoso coração.
Meu empenho, portanto, não é contar a vida do poeta, mas simplesmente esboçar-lhe o retrato, do modo o mais fiel e completo que me fôr possivel. Demais, a vida de um poeta, principalmente de um poeta como Aureliano Lessa, vida simples, descuidosa, sem ambições, sem aspiração alguma, nem mesmo a da glória, que episodios, que peripecias pôde offerecer, que interessem ao público?
Sua vida está em suas impressões intimas, nas scismas de sua alma, nos arroubos de sua imaginação, nas vibrações de sua sensibilidade.
Disso tudo, o que não se passou puramente nas vagas regiões do devaneio, o leitor ahi vai encontrar, vivo e fiel reflexo, nas animadas e formosas composições do poeta. O mais foi um continuo esbanjar das horas da vida, rindo e cantando;—um incessante e descuidoso despencar de flôres sôbre o lôbrego e vertiginoso, vórtice, que rapidamente o ia conduzindo ao tumulo.
Nasceu Aureliano José Lessa em 1828, na cidade da Diamantina, nessa região do norte de Minas, tão fecunda em pedras preciosas, como em talentos superiores. Estudou preparatorios no Seminario de Congonhas do Campo, onde, graças á lucidez e promptidão de sua intelligencia, unidas a uma memoria das mais felizes, fez rapidos progressos. Ahi, parece que se deu ao estudo com mais applicação e assiduïdade, do que nos cursos superiores, pois em materias preparatorias possuïa larga e solida instrucção.
Transportado a S. Paulo, apenas sahido da infancia, afim de frequentar o curso jurídico, sua vida academica foi um longo delirio infantil, um incessante devaneio poetico. Achava elle então em S. Paulo um círculo numeroso de moços apaixonados pela poesia, no meio dos quaes não podia deixar de dar larga expansão ao seu extraordinario gôsto pelas bellas letras.
A paixão pela poesia e pela litteratura amena distrahia por demais naquella epoca a mocidade academica de seus estudos escolares. Aureliano, Alvares de Azevedo, José Bonifacio, Cardozo de Menezes, Silveira de Souza, Paulo do Valle, Ferreira Torres, Lopes de Araüjo, o Portuguez Agostinho Gonçalves, e varios outros mancebos, entre os quaes se contava tambem o autor destas linhas, eram como um bando de canarios, que perturbavam com seus constantes gorgeios os severos estudos dos alumnos de Themis: eram uma verdadeira Arcadia no seio da Academia.
No meio dessa pleiade de cantores, o guaturamo da Diamantina não podia ficar mudo. Graças á sua facil intelligencia, poucas horas bastavam a Aureliano para desempenhar os seus deveres escolasticos; o resto do tempo dissipava-o elle alegremente em convivencias e palestras, improvisando estrophes fugitivas, ou discutindo litteratura entre seus amigos.
Nas polemicas e certames academicos a palavra lhe borbotava dos labios com uma promptidão e abundancia prodigiosa. Com a mesma facilidade com que dissertava sôbre assumptos de litteratura amena, embrenhava-se tambem com incrivel volubilidade nos mais intrincados labyrinthos da methaphysica. Como todos os espiritos dotados de comprehensão extremamente facil, mas a quem falta a calma e paciencia necessarias para reflectir, tomava soffregamente as primeiras intuïções de sua intelligencia como verdades irrecusaveis, e assim por vezes de erro em erro era levado aos mais estranhos paradoxos, que elle todavia não deixava de defender com o accento da mais íntima convicção, e com uma dialectica inesgotavel em recursos.
Essa mania do paradoxo, e o gosto de methaphysicar,—deixem passar a expressão,— o emmaranhavam ás vezes em tal confusão de raciocinios, que o tornavam completamente inintelligivel.
O pendôr de seu espirito para as concepções transcendentaes da philosophia reflecte-se até em algumas de suas composições poeticas, nas quaes o conceito é por vezes tão subtil e alambicado, que prejudica grandemente a clareza.
Aureliano tomou o gráo de bacharel, em Olinda, em 1851.
Deixando os bancos academicos, a sua norma ordinaria de viver em nada se alterou. Continuou sempre o mesmo, sempre alegre e despreoccupado, olhando com indifferença o presente, bom ou máo, e completamente descuidado do futuro. O genio folgazão e imprevidente da puericia parecia nunca mais querer abandonal-o. Era sempre a mesma criança travêssa, espirituosa, voluvel e doudejante.
Epicurista por natureza, Aureliano quereria passar a vida em um contínuo festim.
Não vá, porém, o leitor pensar que era elle um desses sensualistas libertinos e descridos, como os que a imaginação de Byron crêou á sua propria imagem e semelhança, ou um conviva crapuloso das tascas e dos bordéis, como esses que Alvares de Azevedo, exagerando Musset, tanto folgava de esbogar, esperdiçando em tão monstruosas creações as brilhantes côres de sua rica palheta.
Não; Aureliano não tinha parentesco algum com D. Juan, nem tão pouco com J. Rolla, e muito menos com Bocage.
Era un epicurista sui geniris. Suas orgias, se orgias se podem chamar, nunca tinham por theatro o lupanar on a casa de jogo, ou outro qualquer lugar de devassidão e crapula grosseira. Eram delírios galhofeiros em roda da mesa, em companhia de alguns poucos amigos. O fumo dos vinhos elles os evaporavam rindo, cantando, poetisando, ou em passatempos, não direi escolasticos, mas quasi infantis.
Era uma devassidão do espirito— se assim me posso exprimir—jovial e inoffensiva, e não os gozos de sensualismo material. Eram — desculpem-me, se repito tantas vezes a phrase que melhor o caracterisa—eram orgias de criança.
Apenas deixou os bancos da Academia, Aureliano foi nomeado procurador fiscal da Thesouraria Geral de Minas, e teve de estabelecer sua residencia em Ouro-Preto. Não se lhe podia dar emprêgo menos consentanco com sua indole e caracter.
Desterraram o cysne, que ama os lagos azues e os vargedos florescidos, para a crista de um rochedo arido e escalvado. A diplomacia, o magisterio, a magistratura mesmo, teriam por certo rasgado para elle horizontes de melhor futuro, que não esse, talvez o mais arduo, o mais espinhoso, o mais enfadonho e prosaico de todos os empregos.
Assim desempenhou-o elle como poeta, ou antes como criança.
Foi curto e esteril esse periodo de sua vida, que, se me não engano, não durou mais que um anno.
Dahi partiu elle para sua terra natal, acabrunhado e abatido por incommodos physicos, mas sempre com o mesmo espirito scintillante de jovialidade, com a mesma serenidade e descuido infantil.
Dessa data em diante não sei relatar os passos que o nosso poeta deu na vida; sei só que continuou sempre o mesmo genero de vida, cantando, brincando, fazendo versos, e consagrando pouco tempo á advocacia , de que tirava alguns recursos para a subsistencia, até que falleceu a 24 de Fevereiro de 1861, na cidade da Conceição do Sêrro.
Aureliano teria sido um dos mais fecundos e brilhantes poetas de nossa época, se várias circumstancias, algumas das quaes inherentes à sua propria natureza, não o tivessem feito declinar da orbita elevada que o seu grande talento lhe traçava, se sua debil organização physica podesse resistir às crueis provações a que o poeta como de capricho a sujeitava.
Aureliano, como já disse, parecia não fazer caso algum da glória, e muito menos da vida e da saüde. Escrevia e improvisava versos por passatempo, e porque rendia ás musas fervoroso culto. Havia nelle um tal desapêgo da existencia, uma tão completa indifferença pelo seu destino presente e futuro, que é difficil de explicar.
Esse estado da alma não era por certo resultado de exaltação mystica, nem de um philosophismo elevado como o de Socratis; o espirito ligeiro e brilhante de Aureliano, posto que fosse crente e accessivel ao sentimento religioso, nenhum pendor revelava para as contemplações asceticas, e nem se occupava em reflectir sôbre a nihilidade desta vida, nem sôbre as glórias da outra. Tambem não podia provir de nenhum desalento profundo, de nenhuma occulla mágoa que o desgostasse da vida ; sua physionomia sempre jovial, franca e expansiva excluïa toda a idea de soffrimentos intimos, e aquelle seu natural desdem pela existencia não pode ser explicado senão por uma singular disposição de son organismo excepcional.
Foi em virtude dessa estranha disposição de espirito, que Aureliano nunca se esforçou em cultivar regularmente sua bella intelligencia, nem explorou convenientemente a rica lavra de seu talento poetico, e só tratou de ir desfolhando alegre e indifferentemente a flor dos annos sobre a torrente rapida dos tempos.
Nesta breve noticia não me é dado tambem fazer, como desejára, nem uma ligeira apreciação do talento poetico do meu finado amigo. Ia tanto tempo,ha quasi vinte annos!-não converso com aquella formosa e delicada musa, que me era tão familiar !... Tenho della apenas uma reminiscencia confusa, como um écho debil e saudoso, que me vem de longes margens. Suas poesias elle as ia entornando por ahi como flores perdidas, que não queria mais apanhar, e teriam de desapparecer irremissivelmente envoltas no pó do olvido, se o digno irmão do poeta, o Sr. Francisco Lessa, não se encarregasse de as ir apanhando, com grande esforço e trabalho, uma aqui, outra acolá, na poeira do caminho, por onde o autor as foi deixando, para dellas formar uma formosa grinalda, digna de lugar distincto no templo da litteratura nacional.
Essa mesma collecção não a tenho diante dos olhos, e não me atrevo portanto a aventurar desde já apreciação alguma, fiando-me sómente em impressões vagas e obscuras de épocas tão remotas.
Espero a publicação della para avivar minhas impressões, e então enunciar inteiro o meu sentimento a respeito das bellezas e deffeitos do illustre poeta diamantino.
Posso todavia dizer desde já que Aureliano Lessa, além de alçar-se com succeso aos generos os mais graves e elevados, primava tambem nas cançonetas, e em toda a especie de poesias fugitivas.
Elle as compaha à granel, mimosas, delicadas, feiticeiras.
Qualquer impressão, qualquer incidente, qualquer lembrança lhe inspirava instantaneamente deliciosas coplas, ou exquisitos dithyrambos. Creio que esses ligeiros sorrisos de sua phantasia, multicor como o iris, infelizmente se perderam pela maior parte.
Posto que nada soubesse da arte do solfejo, gostava summamente da musica, cantava e tocava violão, e elle mesmo inventava melodias para suas lindas composições eroticas.
Muitas formosas modinhas, que boje ainda são populares, são musica e lettra-da lavra de Aureliano Lessa.
Taes são, entre outras muitas, a maviosa canção em decimas, que se intitala :-Lembranças do nosso amor.
E essa ontra cantiga tão suave e melancolica, que começa por esta endécha
Deixei, de insomnia cercado,
O meu solitario leito,
Para vir contar-te, à noite,
As angústias de men peito.
Muitas e muitas canes elle compunha neste ge- nero, e largando a pensa que acabava de escrever as coplas, ia tentear as cordas do violão para pôl-as em musica.
A vida é curta; quem nega?—
Nem vale a pena dizel-o:
Deus a quebra entre sens dedos
Como um fio de cabello.
Ri, criança; a vida é curta,
Sonho, que dura um instante;
Depois o cipreste esguio
Mostra a cova ao viandante.
A velhice tem saudades
De suas visões passadas;
A mocidade queixumes,
E só a infancia risadas.
Ri, criança etc.
Aureliano tinha a téz ligeiramente morena. Seu bello rosto era de perfeito oval, e da mais severa regularidade linhas curvas e suaves, nariz à grega, rosto proeminente, testa larga e chanfrala, mas pouco elevada caracteristico de espirito irreflectido e impaciente. Era isto com effrito o que constituïa a base do seu caracter, e dir-se-bia que elle não gostava da vida, porque não tinha paciencia de viver. Os cabellos finos e corridos, não eram bem negros, nem castanhos, mas de uma cor especial, tirando a cinzento escuro; os olhos grandes, scintillantes e da mais completa negridão. Era de estatura menos que mediana, mas bem feito, delicado e esbelto de fórma.
Não me consta que tivesse amores serios, mas rendia á amizade o mais fervoroso e sincero culto.
Era franco e generoso além de de toda a medida ; seu coração era thesouro de bondade, nobreza e lealdade.
Helás je n'ai point vu ce sejour enchante,
Ce beau ciel, où il a tant de fois chante!
Eil-os, os bellos encantados sitios,
O céo, puro e risonho,
Que o viram nascer e que o embalaram
Em seu primeiro sonho.
Foram cites os campos que na infancia
Os olhos the arroubaram,
Estes os céos que os vividos fulgores
Na mente le entornaram.
Ahi nutria a phantasia ardente
De imagens fulgurantes,
Ao murmurio do corrego, que rola
Rubis e diamantes.
Ahi tambem, depois de longamente
Peregrinar no mundo,
Sentiu cansaço e tédio da existencia
E desprazer profundo.
E ainda no verdor dos bellos annos
O meu saudoso amigo
Sorrindo de desdom, foi reclinar-se
No último jazigo.
Sea genio era tão limpido e brilhante
Bem como o diamante
De seu paiz natal,
Impetuoso como a cataracta,
Que tomba e se desata
Pelo profundo val.
Da patria sua as fontes e os roched os
Melodicos segredos
Nos labios lhe infiltraram:
E as fadas dos arroios diamantinos
Mil delicados hymnos
Sorrindo lhe ensinaram.
A negra pertinaz melancolia
Longe de si bania
Tangendo a doce lyra;
Se algum pezar a mente lhe roçava,
As azas lhe queimava
Da inspiração na pyra.
Mas nem somente a musa galhofeira
Alegre e prasenteira
Vinha inspirar-lhe o canto:
Ah quantas vezes, quantas, sobre a lyra
O Bardo não sentira
Correr acerbo pranto!
Outras vezes rasgando ethereos véos
O arrebatava aos céos
Valente inspiração;
Então não era mais simples poeta;
Fallava qual propheta
A Deus e á creação!
Sua bella alma nunca a vi vazia
De amor, de poesia,
E nobres sentimentos.
Se alguma dôr o seio seu ralava,
Para si só guardava
As penas e os tormentos.
Rindo e cantando perpassou de leve
Da vida espaço breve
Luzente meteoro:
Rindo e cantando foi para o jazigo
O tão saudoso amigo
Por quem té hoje choro..
Bernardo Guimarães