A Artur Rocha

As ESTRADAS SÃO LONGAS e é curta a piedade dos homens, escreveu no — "Outro amável milagre" — contido no Feixe de Penas o primorosíssimo, o delicioso, o onipotentíssimo psicólogo Eça de Queirós.

São longas as estradas.

É curta a piedade dos homens.



Quer isto dizer que se acha na capital de Santa Catarina, o notável glosista Margarida, esse analfabeto, esse doudo da luz, arremessado nas trevas, bom velho rude e chão, que, se não é, na frase original e observada do esplêndido fantasista, Virgílio Várzea — um sofrimento que vive a rir — é um humorismo fúnebre, dentro de uma alma cristalina de poeta.

São longas as estradas.

E ele veio de muito longe, do país das lágrimas e das saudades, dos enevoamentos do luto, porque perdeu sua esposa, o mote supremo de todas as suas glosas. Vem em busca de um filho, que supôs morto também, morto, na impassibilidade da pedra, na rigidez do granito.

Vem procurá-lo, vem vê-lo ainda, embora, do fundo pesado da sua existência, alguma cousa lhe murmure aos ouvidos:

São longas as estradas.

É curta a piedade dos homens.

É ele, quase, absolutamente, que precisa dessa piedade, ó filhos de Cristo.

Uma piedade justa, que não desdoura, que não humilha; honesta como a intenção destes pontos e vírgulas, franca como a expansibilidade do aroma.

Ele quer essa piedade.

Mães, esposas e filhas, operárias do bem doméstico, colunas direitas dos brios sociais, bíblias inesgotabilíssimas do conforto, das consolações e... da piedade, arremessai um ceitil da vossa fartura aos peregrinos que passam, abri o escrínio da vossa abastança aos que imploram, dignamente, em pé, de rosto limpo mas... desfigurado; deixai as vossas aristocracias de princesas bourbônicas, as vossas reverências e cortesias fidalgas, desapertai o colete do estilo, quebrai a linha da hereditariedade titular, saí, por um momento, dos arminhos flácidos das nossas alcovas elegantes e confortáveis, arquiteturadas, cinzeluradas de azul, brosladas de prata, cheias de caprichos arabescados de arte.

Sede democratas, uma vez.

Com a democracia dos sentimentos, preclaros, decentes, bonitos, galgareis o corrimão feito de rosas e madressilvas e jasmins, da escadaria rutilíssima, madreperolizada, da aristocracia da virtude.

Formai das glosas, dos versos, das rimas do poeta, uma nuvem de ouro, com cintilações purpúreas, para subirdes, envoltas nela, aos intermúndios da crença, de onde o adorável, o cândido Jesus das cândidas bênçãos, entornará nos vossos lábios os aprazíveis licores da ventura infinita, e, vamos, provai, livres da vossa irritabilidade nervosa, do vosso temperamento sanguíneo, que aqui, nesta terra de Oliveira Paiva, o apóstolo sincero da bondade extrema, deixa de existir a sentença do mestre:

É curta a piedade dos homens.

O poeta vos pede pouco, muito pouco.

Atirai em leilão os livros que ele traz, arrematai-os todos, ponde em quermesse os vossos corações, enchei aquelas mãos calosas e dignas, dos mais simpáticos e sonoros níqueis e tudo será feito.

Deixai um momento o sarcasmo, a sátira e o egoísmo; lembrai-vos que a humanidade está sujeita às mesmas leis eternas e imutáveis.

Amanhã, será por vós, talvez, que passará a desolação da vida.

Amanhã, talvez, os caminhos do vosso bem-estar, tilintantes de alegria, inundados de sol, relampagueados de júbilos, estejam tristes, bem tristes... duma tristeza funda e pungitiva.

Deveis pesar os clarões da vossa felicidade, pelas sombras das mágoas alheias.

O poeta vos pede pouco, muito pouco.