Era naquele tempo o Salazar uma das figuras mais salientes do nosso diletantismo literário. Os seus artigos de critica, os seus versos, os seus contos, as suas fantasias estavam ao alcance de todas as inteligências, e eram lidos, senão com avidez, ao menos com simpatia.

Ele tornara-se conhecido, quase célebre, e não atravessava a Rua do Ouvidor sem ouvir estas e outras frases que o enchiam de orgulho: - Lá vai o Salazar! - Olha o Salazar! - O Salazar é aquele!

Pouco a pouco essas manifestações da admiração indígena o foram empanturrando de desvanecimento e vanglória, e não tardou muito que ele se julgasse, coitado! superior a quantos o cercavam, fazendo sentir a sua superioridade com uma importância ridícula.

O toleirão era casado, e a primeira vítima da transformação do seu caráter foi a própria esposa, excelente rapariga, bem educada, inteligente, muito inteligente, mas tímida, daquela timidez peculiar às moças brasileiras que não perderam noites em festas e bailes.

Estavam casados havia três anos, mas o literato nunca estudara nem compreendera sua mulher. Volvido o período da intitulada lua-de-mel, todo de brutalidade e egoísmo, e começando a aura do publicista, ele afastou-se da esposa tanto quanto uma pessoa pode afastar-se de outra com quem almoça e janta quase todos os dias, e com quem vive debaixo das mesmas telhas.

Não tinham filhos; faltava-lhes esse traço de união, que talvez os tivesse aproximado.

Entretanto, ela não se queixou nunca da indiferença do marido; sendo, aliás, bonita, muito bonita, mostrou uma resignação que ele seria o primeiro a admirar, se todo o tempo não lhe fosse preciso para admirar-se a si próprio.

Aquela frieza, aquela sobranceria, aqueles ares de semideus ainda mais se acentuaram quando o Salazar, um dia, recebeu, pelo correio, longa carta em que uma desconhecida, sob o pseudônimo de Poverina, manifestava pela sua interessante pessoa uma simpatia e uma admiração excepcionais.

O que mais o impressionou nessa missiva anônima foi o primor da forma. A desconhecida revelava cultura intelectual superior à dele, e dizendo-se, aliás, sua discípula, mostrava notáveis qualidades de estilista, que o outro não possuía.

A princípio supôs Salazar que a correspondência fosse de algum marmanjo, desejoso de se divertir à custa dele; mas outras e sucessivas cartas o convenceram do contrário. Quem quer que fosse tinha delicadezas femininas de que nenhum homem seria capaz.

Colocando-se, sempre com encantadora modéstia, num plano subalterno, a escritora aconselhava-o com muita discrição e habilidade, a corrigir-se de uns tantos defeitos; apontava-lhe contradições, incongruências, descuidos gramaticais, ligeiros solecismos indignos da pena de um escritor reputado; mas atribuía tudo à precipitação com que ele escrevia, e nem por sombras aludia à sua ignorância, muitas vezes apanhada em flagrante. Um homem não seria tão generoso.

Demais, essas observações e conselhos eram acompanhados de confissões gravíssimas. Ela declarava que o seu maior prazer seria, se pudesse, estar perto dele no seu gabinete de trabalho, auxiliando-o, passando a limpo os seus escritos, procurando um termo no dicionário, caçando um sinônimo, verificando um trecho em qualquer obra citada, corrigindo aqui um descuido, preenchendo ali um claro, mudando as penas, enchendo o tinteiro, cortando o papel em tiras, etc. "Enfim, dizia ela, quisera ser a tua secretária, uma secretária a quem, terminado o trabalho, remunerasses, não com dinheiro, mas com beijos e caricias.

"Mas para isso, continuava a desconhecida, seria preciso que um e outro fôssemos livres, e somos ambos casados; nem meu marido nem tua mulher merecem que os enganemos.

O Salazar respondia a todas essas cartas, e, escusado é dizer, empregava súplicas, argumentos, razões, para que a Poverina se desvendasse.

Ela resistia energicamente. "Não procures saber quem sou; nunca o saberás. O encanto das nossas relações é esta abstração, este delicioso platonismo. Imagina que somos Heloísa e Abelardo, e que estamos separados por uma fatalidade psicológica..



Durante um ano a correspondência continuou assídua de parte a parte. O Salazar recebia pelo correio as cartas de Poverina, e respondia-as pela posta-restante.

Pediu-lhe um dia que não lhe dissesse o seu nome, mas lhe mandasse ao menos o seu retrato. "Não, respondeu ela; mandar-te o meu retrato seria o mesmo que te dizer quem sou. Não suponhas que deixo de satisfazer o teu pedido pelo receio de me achares velha ou feia. Sou muito mais nova que tu, e de feia nada tenho. Digo-te mais: pelo interesse, pela insistência com que olhaste para mim certa vez em que nos encontramos na rua, creio que me achaste bonita... Não calculas como nessa ocasião tive ímpetos de me atirar nos teus braços, dizendo: - Poverina sou eu..."

O Salazar estava, por fim, radicalmente apaixonado, e, a proporção que esse amor desesperançado e extravagante o ia absorvendo e exacerbando, ele mais indiferente se mostrava para com a infeliz esposa, cada vez mais resignada, mais conformada com a sua triste sorte de mulher posta a um canto.



Mais seis meses de correspondência, e o caso tomou uma gravidade terrível. O Salazar estava obcecado por aquela mulher, por aquele fantasma, por aquele mistério! Já não produzia nada, limitando-se apenas à sua tarefa epistolar, que lhe monopolizava o espírito, como se fosse uma obra de fôlego, um trabalho de grande transcendência filosófica.

Um dia escreveu a Poverina, dizendo que não lhe era possível continuar a viver naquele desespero. Se ela não lhe proporcionasse ocasião de vê-la, de estar ao seu lado, gozando o benefício divino da sua presença, ele procuraria no cano de um revólver a tranqüilidade que lhe fugira.

Depois de três ameaças idênticas, formuladas em termos decisivos, Poverina cedeu, marcando a Salazar uma entrevista a noite, no Largo do Machado, naquele tempo mais sombrio e menos freqüentado que hoje.

Calcule-se a impaciência com que o literato contou as horas!



Cinco minutos antes do momento aprazado, ele entrou no jardim, e viu, de longe, uma mulher de preto, com o rosto coberto por um véu, sentada no banco indicado na carta de Poverina.

O coração do mísero saltava, as suas mãos estavam geladas, todo ele tremia...

Foi nesse estado que o Salazar se aproximou daquele vulto de mulher.

Ela convidou-o com um gesto a sentar-se.

Ele sentou-se.

— Aqui me tem! disse Poverina, erguendo o véu.

O publicista ficou estupefato: era a sua própria esposa!

— Tu?... que é isto... Eu... Tu... Eras tu que...?

— Sim, era eu que...

— Não é possível!

— Tenho em casa todas as minutas das cartas de Poverina. Podes encontrar.



Dali por diante aquele desalmado, que nem sequer conhecia a letra de sua mulher, foi o modelo dos maridos, e ela o modelo das secretárias.

Diziam até as más línguas que o secretário era ele. Não sei: já morreram ambos e a coisa ficou em família.

(Correio da Manhã, 22 de janeiro de 1905)