Projeto História/Volume 32/A Chave do Tamanho

A CHAVE DO TAMANHO:
UMA GUERRA DE VERDADE E UMA CHAVE DE MENTIRINHA
Marisa Philbert Lajolo[*]

“Diz o Neves que você gostou d’A Chave do Tamanho.
Isso me deu prazer. A Chave é filosofia que gente burra não entende.
É demonstração pitoresca do principio da relatividade das coisas.”
(Carta de 1.2.1943 a Godofredo Rangel).[1]

Por que apresentar A Chave do Tamanho, obra de Monteiro Lobato (1882-1948) destinada a um público infantil, a historiadores?

Uma obra infantil, publicada na década de 1940 do século passado (a primeira edição do livro é de 1942), poderia trazer mais esclarecimentos sobre a Segunda Guerra Mundial? Talvez possa; mas, muito mais do que isso, pode nos sugerir como a década de 40 via a Segunda Guerra. Pode também nos dizer como um episódio contemporâneo de um escritor é transformado em criação literária.

Além de fornecer informações sobre eventos aos quais se referem, os textos literários estabelecem relações com a época em que foram produzidos. Cada período imagina o seu passado de forma diferente. Não há passado, mas passados, já que em qualquer texto, mesmo histórico ou literário, moram milhares de autores, discursos, filosofias, espaços e épocas, que também colaboram para a presentificação do assunto de que se ocupa o texto.

É a partir desses pressupostos que esta breve análise de A Chave do Tamanho pretende discutir possíveis relações desse livro de Monteiro lobato com a Segunda Guerra Mundial e, a partir daí, da Literatura com a História.

Monteiro Lobato – escritor, advogado, jornalista, empresário, editor, adido comercial do Brasil em Nova York, pioneiro na luta pela nacionalização do petróleo – tornou-se figura importante dentro e fora do cenário cultural brasileiro, destacando-se no campo literário. Sua produção, constante ao longo de toda sua vida, foi reunida e publicada pela Editora Brasiliense, em duas séries que representam sua obra completa:[2] saíram em 1946 os treze volumes que compõem a Série Adulta e, no ano seguinte, os dezessete que com-põem a Série Infantil.

A publicação de A Chave do Tamanho que, como já vimos, foi originalmente lança-da em 1942 , parece ter sido neste mesmo ano anunciada por Monteiro Lobato em carta a Purezinha[3], sua esposa: “Hoje é dia importante: vai sair “A Chave do Tamanho”, e mandarei um para aí. Estou com muitas esperanças nesse livro lá fora. Leia e me dê a impressão exata”.[4]

A concretização das muitas esperanças que Lobato dizia alimentar para o livro pa-rece ultrapassar suas expectativas. A obra tem várias edições no Brasil e é, efetivamente, traduzida na Argentina, tal como indica a tabela abaixo:[5]

Título Tradutor Ano Edição Editora Nº de pg. Tiragem Localização

A Chave do
Tamanho

1942 1ª ed.

Cia Ed.
Nacional

193

11.370
ex.*

Biblioteca
Monteiro Lobato

A Chave do
Tamanho*

1945* 2ª ed.*

Cia Ed.
Nacional*

10.051
ex.*

A Chave do
Tamanho

1947 1ª ed. Brasiliense 210

Biblioteca
Monteiro Lobato

A Chave do
Tamanho

1949 5ª ed. Brasiliense 197

CEDAE – FML,
344

A Chave do
Tamanho

1954 6ª ed. Brasiliense 197

CEDAE – FML,
344

A Chave do
Tamanho

1975 13ª ed. Brasiliense

Biblioteca
Monteiro Lobato

A Chave do
Tamanho

1994 40ª ed. Brasiliense 88

La llave del
tamaño

Ramón Prieto

1953 4ª ed.

Editorial Losada

204

CEDAE – FML,
309

Em A Chave do Tamanho, Emília, na tentativa de acabar com a guerra, viaja ao fim do mundo em busca da “casa das chaves” – lugar onde ela imagina que está a chave da guerra para desativá-la. Mas engana-se e desativa a chave do tamanho, alterando, com isso, a estatura dos seres humanos, e destruindo a “civilização clássica”. A “eficácia” da atitude de Emília é grande: apesar de baixar a chave errada, a boneca atinge seu objetivo de acabar com a guerra, como ela mesma constata:

Mas a guerra acabou! Ah, isso acabou! Pequeninos como eu, os homens não podem ma-tar-se uns aos outros, nem lidar com aquelas terríveis armas de aço. O mais que poderão fazer é cutucar-se com alfinetes ou espinhos. Já é uma grande coisa... (p. 11)[6]

Trata-se de um quase apocalipse. Mas Emília defende a “reforma”, vendo como positiva a extinção das armas criadas pelo progresso: “A vida agora vai começar de novo – e muito mais interessante. Acabaram-se os canhões, e tanques, e pólvora, e bombas incendiárias” (p. 44).

Diante da impossibilidade do retorno à “antiga ordem”, Emília e toda humanidade dão início à busca pela sobrevivência, através da tentativa de adaptação a um novo modo de viver. Ao longo da narrativa, observam-se diversos pontos negativos da “antiga ordem”, a ordem dos “tamanhudos” – segundo ela. A boneca, já com o status de gente e, portanto, também miniaturizada, torna-se o próprio símbolo da nova ordem gerada pela redução do tamanho. Ela consegue adaptar-se aos novos problemas impostos pela pequenez, valendo-se sempre da inteligência. E se a humanidade estava condenada a viver “pequena”, Emília mostra que apesar de o homem ter perdido o seu tamanho, não perdera a capacidade de reflexão.

A “nova ordem”, que surge com o “apequenamento” é também defendida por uma outra personagem do livro, o Dr. Barnes, professor de Antropologia da Universidade de Princeton. A cidade dirigida por ele – Pail City – representa um modelo de sociedade adaptada ao novo tamanho. Todos lá começam a se organizar para descobrirem métodos de sobrevivência em um meio que, antes, era apenas habitat de pequenos animais.

A representação de Pail City é, assim, uma maneira de mostrar os benefícios da extinção de uma ordem, fundada na violência e na competitividade. Regressando à era anterior ao fogo, com a inteligência e os conhecimentos de agora, seria possível repensar valores da sociedade antiga e o caminho pelo qual a busca pelo poder estaria conduzindo a humanidade?

Para Lobato talvez, para Emília com certeza

A “antiga ordem” havia fracassado aos olhos de Emília, e tal fracasso evidenciava-se pela guerra – o homem se autodestruía bem como a “todas as coisas criadas pela própria civilização” (p. 45). Destarte, a redução do tamanho permitiria ao homo sapiens redirecionar o progresso de sua espécie, progresso que deveria se efetuar de maneira o mais próxima possível da ordem natural.

A idéia de “ordem natural” – recorrente no livro – cria uma oposição entre a “nova” e a “antiga” civilização ocidental. Expressa em obra de 1942, essa idéia parece destoar de outras, expressas em obras e cartas anteriores. Em 1942, a crítica social de Lobato não se restringe ao Brasil, mas estende-se pelas sociedades industriais, anteriormente tão admiradas pelo autor, como exemplifica a carta que, em 26.6.1927, de Nova York, Lobato escreveu a seu cunhado Heitor de Moraes:

Sente-se em tudo a riqueza espantosa do país. Não há pobres, o pobre daqui equivale
ao remediado daí. Toda a gente possui auto. O porteiro cá da nossa casa possui um
Cadillac. (...)

(...) A cidade é um oceano de automóveis. Para onde quer que você vá só se vêem auto-
móveis, de dia ou de noite porque a vida não para. Tudo é tão desconformemente gran-
de, tudo é tão ou maior do mundo, que depois da 2a. semana a gente resolve não admirar
mais coisa alguma. Do contrário seria preciso andar de boca aberta o dia inteiro.[7]

Também em América, livro de 1932, publicado logo após o retorno de Lobato dos EUA, diálogos entre o narrador e Mr. Slang sugerem a crença do escritor nos Estados Unidos, sendo este país tomado como modelo de civilização, lugar onde o desenvolvi-mento científico-tecnológico atingiu o ápice. Para o Lobato desta época, a riqueza de uma nação dependeria de seu progresso tecnológico, possível somente através do ferro, do carbono e do petróleo, matérias-primas necessárias à produção e ao funcionamento das máquinas. A riqueza norte-americana e o alto padrão de vida de sua população seriam “consequencia logica ao aumento da eficiencia do homem graças ao uso progressivo da maquina” [sic].[8]

Também na obra infantil, o elogio ao progresso se faz presente. Em História das Invenções, livro de 1935, quando D. Benta lê para os netos a História das Invenções do Homem, o Fazedor de Milagres (de Hendrik van Loon), é nítida a defesa do progresso industrial. A avó das crianças elogia o progresso, ao responder a uma pergunta de Pedri-
nho sobre a importância da descoberta do fogo. O menino desejava saber se esta era uma “grande invenção”, ao que a avó responde:

– Das maiores, meu filho. Para mim, foi a invenção que permitiu tudo ao homem. A ci-
vilização que temos hoje, com suas locomotivas poderosíssimas, seus automóveis, seus
navios gigantescos, suas fábricas de tudo quanto existe, é uma filha do Fogo.[9]

Em História do Mundo para as Crianças (obra de 1933), no entanto, já podemos per-ceber um Lobato menos categórico na defesa do modelo industrial da civilização. Embora talvez equivocando-se quanto à causa dos problemas ligados ao progresso, pela voz de D. Benta, Lobato matiza seu entusiasmo:

– Melhoram a vida, sim, embora não melhorem o homem. A nossa vida hoje podemos
dizer que é riquíssima, se a compararmos com a de um século atrás. Entretanto, o ho-
mem é o mesmo animal estúpido de todos os tempos. (...) A humanidade continua a
sofrer dos mesmos males de outrora – tudo porque a força da Estupidez Humana ainda
não pôde ser vencida pela força da Bondade e da Inteligência. Quando estas ficarem
mais fortes do que aquela, então, sim, teremos chegado à Idade de Ouro.[10]

Assim, as críticas ao progresso que se encontram em A Chave do Tamanho, dialogam com diferentes posturas que, ante o tema, Monteiro Lobato expressou ao longo de sua obra. Como ele, o Dr. Barnes vê a guerra de 1939 como conseqüência da já longínqua conquista do fogo.

Como justificar a mudança de posição de Monteiro Lobato? Talvez pelo contexto de produção da obra: A Chave do Tamanho (1942) foi escrita em meio à Segunda Guerra, e em uma época triste para Lobato, que conheceu derrotas pessoais no campo do petróleo, e problemas graves na vida particular. Ficou alguns meses na prisão em 1941 e, nessa época, seu filho Edgard lutava contra a tuberculose, da qual veio a falecer a 13 de fevereiro de 1943.

Mas essa perspectiva negativa ante o “progresso” das sociedades industriais coexiste, na história, com uma nova utopia: Emília, talvez porta-voz de Lobato, entusiasma-se com a “nova” civilização que está sendo construída em terras americanas, a já mencionada Pail City:

– Estou gostando de sua “atividade adaptativa”, doutor. Fazer tanta coisa em tão pouco
tempo até me parece milagre. Acha que o homem pode subsistir, assim reduzido de
tamanho?

– Perfeitamente. Não só subsistir como até criar uma nova civilização muito mais agra-
dável que a velha – sem os horrores da desigualdade social da fome, das bliztkriegs e
das inúmeras complicações criadas pelos inventos mecânicos (p. 74).

Embora o apequenamento tenha destruído a “civilização do progresso”, da qual, segundo o próprio Lobato, os Estados unidos seriam o grande emblema, a construção da nova sociedade dá-se em terras americanas, que aparece assim como berço do “novo mundo”. Na representação de outros países, como a Alemanha, o Japão e a Rússia – também eles presença importantíssima da guerra em curso –, a necessária reformatação social não se concretiza. O tom satírico com que Emília trata os dirigentes da Alemanha e do Japão intensifica a diferença que o livro postula entre os Estados Unidos e esses países, com o que, talvez, o leitor se incline para os aliados. No caso da Alemanha, acentuando o tom cômico do texto, Emília rebaixa a figura de Hitler:

[...] o ditador que levou o mundo inteiro à maior das guerras, e destruía cidades e mais
cidades com seus aviões e afundava navios com seus submarinos, e matava milhões e
milhões de homens com seus canhões e as suas metralhadoras – o homem mais pode-
roso que jamais existiu. Tudo isso por quê? Porque tinha oito palmos e meio de altura.
Assim que foi reduzido a quatro centímetros, todo seu poder evaporou-se. Ele, se é que
não foi para o papo de algum pinto sura, permanece o mesmo, com a mesma energia mental, com a mesma disposição destruidora e a mesma vontade de aço – mas não pode mais nada. (p. 67)

O procedimento de desqualificação é igualmente aplicado à descrição do Imperador do Japão: “O Visconde espantou o Gato Imperial e tomando a tampa de caneta virou-a de boca para baixo, sacudindo-a. Caiu de dentro uma tripinha cor de cuia. Era o Imperador do Japão, o Filho do Sol...” (p. 69). Quando se refere à Rússia, Emília aponta apenas para as conseqüências trágicas da perda do tamanho, negando-se, no entanto, a assumir a responsabilidade pela tragédia que havia causado com o “apequenamento”. Sensível à baixa temperatura, porém insensível ao drama coletivo, decide ir para a Califórnia:

[...] O frio era horrível, muitos graus abaixo de zero, e aqueles milhões de homens que os Ditadores tinham remetido para os gelos estavam todos mortos.

(...) Nem procuraram sair de dentro das roupas desabadas, porque então morreriam ainda mais depressa no entanguimento do frio exterior.

(...) Em minutos, porém, os exércitos alemães e soviéticos viraram picolés. (p. 69) (...) E como começasse a ficar entanguida, deu ordem ao Visconde de ir para um bom clima, dos quentinhos.

– África? – perguntou o milho.

– Não. Califórnia – respondeu Emília com pensamento em Holywood. (p. 70)

Ao informar seus leitores que a boneca estava “com o pensamento em Holywood”, o narrador onisciente reforça a valorização dos EUA, retomando-se, assim, o ponto de vista que Monteiro Lobato assumira em cartas e artigos escritos anteriormente, sobretudo no período em que viveu em Nova York.

A Chave do Tamanho registra que o horror da guerra ecoava por todo o mundo, chegando ao Sítio do Picapau Amarelo. Como é provável que ocorresse na casa de vários leitores de Lobato, as notícias que chegavam sobre os conflitos entristeciam D. Benta, e assim, faziam “anoitecer o Sítio do Picapau Amarelo” (p. 9). Narizinho, argumentando que aquilo ocorria muito longe dali, tentava consolar a avó, que redargüia com uma ima-gem biológica da humanidade:

– Não há tal, minha filha. A humanidade forma um corpo só. Cada país é um membro desse corpo, como cada unha, cada mão, cada braço ou perna faz parte do nosso corpo. Uma bomba que cai numa casa de Londres e mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha como você ou deixa aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto como se caísse aqui. (p. 9)

Se pudermos considerar D. Benta nessa passagem um alter ego de Lobato, vislumbram-se aqui alguns traços do pensamento lobatiano sobre a guerra. Ao repudiar a violência da guerra, Lobato, pela voz de Dona Benta, estabelece uma comparação entre a sociedade e o corpo humano. Essa comparação aparece também em “O pai da Guerra” (A Onda Verde),[11] onde Lobato considera que cada parte do organismo possui uma função, assim como cada elemento na guerra. O Estado impõe a guerra e escraviza os vencidos, representando, assim, a força intelectual, o cérebro. O povo é o maior prejudicado, é quem perde e morre nos combates, é a força física, os pés e as mãos. O autor define a guerra como o “cancro” que massacra o homem, que destrói a civilização.

Emília, na obra de ficção, tentava conter esse “cancro” de que o autor se ocupara no ensaio anterior. Porém, o problema não foi inteiramente resolvido. Com o “apequenamento”, as guerras cessaram, mas as catástrofes não. Milhares de pessoas morreram asfixiadas no momento da perda do tamanho, outras milhares foram devoradas por animais domésticos, e muitas outras ainda morreram entaladas, surpreendidas em esconderijos ao voltar ao tamanho normal.

A impassibilidade de Emília, ante tais tragédias, parece encontrar eco em uma carta de Lobato a Artur Coelho de 1º de agosto de 1943 ou 1944 (não se sabe o ano exato), publicada em Cartas Escolhidas, na qual Lobato defende a idéia de que a guerra devia destruir as pessoas e não as construções, antecipando – não se sabe se com ironia – a idéia da bomba de nêutrons:

A desgraça da guerra atual é matar muito pouca gente e destruir muita “coisa feita”.
A coisa feita é que constitui a riqueza do mundo, como obra do aturado trabalho das
gerações. Destruir isso é o maior dos crimes imagináveis – ao passo que destruir gente
é apenas sangria aliviadora do grande mal que é o excesso de gente.[12]

Segundo o escritor, se a parte construída de Nova York fosse destruída, haveria um transtorno para os moradores que teriam de povoar outro lugar. No entanto, se só pessoas fossem destruídas, em pouco tempo, a cidade seria repovoada. Para Lobato, o desenvolvimento após a Primeira Guerra Mundial foi possível graças ao fato de a guerra ter atingido apenas as pessoas, e não as “coisas materiais”.

O desprezo pela raça humana também aparece em História do Mundo para as Crianças (1933). Embora anterior ao conflito, a obra foi acrescida, em edições posteriores, de episódios relativos à Segunda Guerra Mundial, e nela o autor, pela boca de D. Benta, comenta que a humanidade admira os Napoleões, Aníbais e Alexandres por terem realizado grandes proezas, grandes conquistas e matado milhões de pessoas.

Observa-se, portanto, que a questão bélica e todas as suas conseqüências são freqüentemente discutidas nas obras de Lobato. Ora de uma maneira fria e racional, como se observa na carta a Artur Coelho e em algumas falas de Emília; ora de maneira passional, como o sofrimento de D. Benta com as notícias de morte, provocadas pelos bombardeios.

As reflexões sobre a guerra presentes em A Chave do Tamanho parecem fundamentadas numa concepção darwinista do ser humano e de seu modo de estar no mundo. É possível, no entanto, perceber a influência das idéias rousseaunianas de civilização e barbárie: “A situação era tão nova que as suas velhas idéias não serviam mais. Emília compreendeu um ponto que D. Benta havia explicado, isto é, que nossas idéias são filhas de nossa experiência” (p. 11).

Em A Chave do Tamanho, Monteiro Lobato, na figura de Emília, descreve-nos o processo percorrido pela razão, desde seu estado bruto, de natureza, até o estado de civilidade, percurso bastante próximo de formulações de Rousseau relativas à barbárie e à civilidade. Destituída de seu tamanho, Emília vê-se diante de seu estado bárbaro, bruto, inclusive sem roupas, ou seja, diante de seu estado de natureza.


A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava.(...). Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas idéias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos dessa nova condição não o degradassem freqüentemente a uma condição inferior àquela donde saiu, deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem.[13]


Em A Chave do Tamanho, Emília, encolhida, passa a trilhar o caminho de teknos que a levará à civilidade, ou seja, ela precisa refazer em sua história todo o processo civilizatório, entendendo-se a civilização como fruto de um estado de barbárie produzido pelas necessidades do homem. Isso deveria ser bom se, como disse Rousseau, na nova condição, não houvesse abusos que levassem o homem a um estado ainda mais inferior que aquele de onde saiu. Emília, num processo civilizatório acelerado em relação aos outros seres “apequenados”, abusa de sua condição: mente, omite, manipula, com o objetivo de justificar sua iniciativa de desligar a chave.

Essa mesma idéia de processo histórico é defendida de forma mais sistemática pela personagem Dr. Barnes, que vê no surgimento da cultura pós-fogo um dispositivo gerador das guerras, uma vez que fogo e guerra têm origem no desejo humano pela dominação. São, portanto, várias as vozes que retomam a idéia de D. Benta, de que a guerra é resultado de um processo civilizatório da humanidade e de certa maneira, pode ser entendida como uma “limpeza social”. Em A Chave do Tamanho, o apequenamento assume essa mesma face eugenista, legitimada pelo discurso científico do século XIX, ainda em voga. Monteiro Lobato, nascido em meio a isso, é, ao mesmo tempo, produto e agente do racionalismo do século XIX. E sua personagem mais famosa, Emília, alcança o auge da razão em A Chave do Tamanho, quando sugere que a redução do tamanho traria benefícios à humanidade:

O mundo já andava muito cheio de gente. A verdadeira causa das guerras estava nisso
– gente demais, como Dona Benta vivia dizendo. O que eu fiz foi uma limpeza. Aliviei
o mundo. A vida agora vai começar de novo – e muito mais interessante. (p. 44)

A imagem de uma boneca convencional, simulacro da figura humana feminina, evoca para muitos a idéia de brincadeira. Brincando de ser mãe e de ser filha, de ser amiga e inimiga, de chorar e de sorrir. Para a arte-educadora Fanny Abramovich,[14] no ato de brincar, a criança representa papéis sociais e psicológicos que ela observa entre os adultos, recriando a realidade que está à sua volta – através de instrumentos poderosos como a fantasia, a sensibilidade, a afetividade e a criatividade –, transformando o espaço da brincadeira em um mundo próprio, onde realiza os seus desejos e vivencia as suas emoções mais profundas.

E uma boneca – talvez o mais importante simulacro da infância no mundo industrializado – é quem assume gradativamente o papel principal na saga do Sítio do Picapau Amarelo e também em A Chave do Tamanho. Seu “protagonismo” mostra-se logo no co-meço da história, quando, depois de ouvir a explicação de Dona Benta sobre o que estava acontecendo na Europa – a tragédia da Segunda Guerra –, não se conforma com o drama mundial e se põe a refletir:

Na noite daquele dia, em sua caminha de paina, ela perdeu o sono. Quem entrasse em
sua cabeça leria um pensamento assim: “Esta guerra já está durando demais, e se eu
não fizer qualquer coisa os famosos bombardeios aéreos continuam, e vão passando
de cidade em cidade, e acabam chegando até aqui. Alguém abriu a chave da guerra. É
preciso que outro alguém a feche. Mas onde fica a chave da guerra? Pessoa nenhuma
sabe. Mas se eu tomar uma pitada do superpó que o Visconde está fabricando, poderei
voar até o fim do mundo e descobrir a Casa das Chaves. Porque há de haver uma Casa
das Chaves, com chaves que regulem todas as coisas deste mundo, como as chaves da
eletricidade no corredor regulam todas as lâmpadas de uma casa”. (p. 9)

Segundo Walter Benjamin,[15] os pólos do mundo das bonecas são o amor e o jogo. Mesmo que sejam feitas artesanalmente e se tornem velhas e feias, elas simbolizam sen-timentos que estão próximos do amor, do carinho, da amizade e da ternura, tal como as concebem os adultos ocidentais. Quando faz parte de qualquer jogo, posto em prática pela sua “dona”, a boneca geralmente tem um papel passivo e meramente figurativo, não de in-terlocutor mas de ouvinte e espectador, cabendo à fantasia da criança produzir respostas que alimentem o diálogo imaginariamente compartilhado.

Porém, nem no amor nem no jogo a personagem principal do Sítio se equipara às bo-necas convencionais, pois ela não é nenhum doce de candura, não representa a inocência nem a ternura, seu vocabulário não inclui a palavra passividade. Emília constitui um caso raro de complexidade e hibridismo no rol das personagens infantis de que se tem notícia: é uma perfeita fusão de boneca e gente. Ela mesma afirma, em A Chave do Tamanho, que sofreu uma evolução e de boneca passou a ser gente:

E você, Emília? Se também diminuiu então é que é gente – mas toda vida ouvi dizer que era boneca. Como explica o mistério?

Muito simples. Eu de fato já fui boneca de pano, mas evolui e virei gente (...)
De simples bruxa de pano, fui evoluindo, virei gentinha e hoje sou o cérebro e a vontade do Visconde. (p. 52)

O encontro de Emília com líderes do mundo em guerra é um bom exemplo para ilustrar o poder que seu criador, Lobato, lhe confere, uma vez que ela interfere no processo histórico vivido pela humanidade. Ela comunica ao ditador Hitler que aquela semana de “redução” fora apenas uma advertência e ordena que o “chefe da guerra” faça a paz sob a pena de perder completamente o tamanho caso desobedeça:

Cheguei até cá para dizer uma coisa só – que o Tamanho morreu e quem acabou com o Tamanho eu sei quem foi, e sei também que essa pessoa é a única que pode novamente restituir aos homens o antigo e querido tamanho – aquele tamanho malvado, porque se não fosse ele os homens não teriam sido maus como foram, fazedores de guerra, afundadores de navios, judiadores de judeus. Mas esse misterioso alguém só restaurará o tamanho perdido se tiver a certeza de que Vossa Excelência vai fazer a paz, e botar fora todas as horrendas armas que andou amontoando, e desse momento em diante viverá na mesma paz e harmonia com o mundo em que vivem as formigas e abelhas. (p. 68)

Na seqüência desse diálogo com Hitler, a boneca assume uma postura ditatorial, pois ela é a responsável pelas mudanças ocorridas no tamanho das pessoas e, portanto, a única capaz de mudar esta situação:

Se o Tamanho voltar e tudo ficar como estava, quero vida nova, sem guerras, sem ódios, sem matanças, sem armas, está entendo? E se por acaso algum dos futuros poderosos romper o trato, o castigo será terrível. Sabe qual será o castigo? O tal “Alguém” desce a chave duma vez, e o Tamanho fica reduzido a zero. Em vez de 4 centímetros, como
Vossa Excelência tem hoje, passará a ter 4 milímetros, ou menos, e será devorado até
pelas moscas e pulgas. Está entendendo? (p. 68)

Divertido ícone do non sense lobatiano, a bonequinha – originalmente de míseros quarenta centímetros – feita de chita e recheada de macela para ser propriedade de Na-rizinho desbanca a imagem romantizada de brinquedo feminino. O “estrelato”, que, na primeira obra infantil de Lobato, a julgar pelo seu título Lucia ou A Menina do Narizinho Arrebitado (1920), parece ser de Narizinho, passa a ser, nos livros posteriores, de Emília.

Em 1942, Emília já tem, pois, cacife na obra de Lobato para protagonizar o livro no qual o escritor trata de um episódio contemporâneo. Ao colocar como ponto de partida e pano de fundo de A Chave do Tamanho a Segunda Guerra Mundial, Monteiro Lobato propõe, através de Emília, uma solução para esse problema: o fim imediato do conflito e a construção de uma nova sociedade. A “reinação” de Emília é determinante da “nova ordem”, pois ao mexer na chave que regula o tamanho da humanidade, a boneca evita a continuação da guerra.

A radicalidade da ação da boneca permite que surjam visões antagônicas sobre as conseqüências do “apequenamento” dos humanos. Emília, a causadora da mudança, de-fende a redução da espécie com o argumento de que a antiga civilização havia falhado, e que a atual ordem traria soluções para um dos grandes problemas mundiais: a guerra:

A tal “civilização clássica” estava chegando ao fim. Os homens não viam outra solução
além da guerra – isto é, matar, matar, matar, destruir todas as coisas criadas pela própria
civilização – as cidades, as fábricas, os navios, tudo. Pense bem, Visconde. Essa tal
civilização havia falhado. Havia enveredado por um beco sem saída – e a saída que
achava qual era? Suicidar-se a tiros de canhões. (p. 45)

Por outro lado, o Visconde condena a atitude da boneca e vê a nova situação como catastrófica:

Destruir o tamanho das criaturas!... Sabe que isso corresponde a destruir toda a civili-
zação humana? Desde que o mundo é mundo, os homens, com as maiores dificuldades,
foram construindo essa civilização feita de casas, máquinas, estradas, veículos, idéias.
Tudo estava em relação com o tamanho natural dos homens. Mas agora com a redução
do tamanho, nada mais serve e, portanto, o que você fez, Emília, foi destruir a civiliza-
ção! Des-tru-ir a ci-vi-li-za-ção!... (pp. 43-44)

O fato de a redução do tamanho atingir toda a humanidade relaciona-se com a dimensão da guerra, uma guerra mundial que, assim como a atitude de Emília, trouxe conseqüências para todos os seres humanos, independentemente de posições geográficas, ideológicas, sociais e políticas. Dessa forma, os acontecimentos mostrados ficcionalmente por Lobato adquirem um caráter universal e se subordinam às suas estratégias de trazer o tema da guerra mundial às crianças brasileiras, enfatizando que todos os países, todas as economias, todas as sociedades são atingidas por um confronto dessa proporção.

É possível reconhecer nos fatos reais (a guerra) e ficcionais (a perda do tamanho) conseqüências semelhantes como, por exemplo, o sofrimento e a destruição. Tanto a redução do tamanho quanto a guerra são ações cujos alvos são os próprios seres humanos e, mesmo que a primeira delas vise ao fim da segunda, ambas acabam tendo a mesma conseqüência: mortes em demasia – principalmente de pessoas que não estão envolvidas diretamente, nem são as causadoras da situação.

A pesquisadora Adriana Vieira,[16] em sua tese, entende a redução dos seres humanos – tema já tratado na literatura infantil, como em Alice no país das Maravilhas e Viagens de Gulliver – “como a criação de um novo ponto de vista para a reflexão sobre o mundo, a história e a humanidade” (p. 163). Esse “novo ponto de vista” é defendido pelas crianças do sítio que, no plebiscito proposto por Emília para deliberar sobre a permanência do apequenamento, votam a favor da manutenção da “nova ordem”. No entanto, venceu o voto conservador (dos adultos e do Visconde), que defendiam a volta do tamanho:

– E agora – continuou Emília – quem não quiser o tamanho, levante o pé!

A criançada inteira levantou o pé. Eram radicais. Não tinham idéias emperradas na ca-
beça. Gostavam de mudanças. Emília contou os votos. Narizinho, Pedrinho e Juquinha.
Três votos destamanhudos. (...)
– Quem quiser a volta do tamanho, levante a mão.

– Os adultos ali presentes levantaram a mão. Eram conservadores, com idéias emper-
radas na cabeça e preferiam que tudo voltasse a ser como antigamente. Emília contou os votos. Dona Benta, Tia Nastácia, o Coronel. Três votos tamanhudos.
(p. 84)

Assim, ao retratar a guerra, A chave do tamanho – um dos últimos livros escritos por Monteiro Lobato – extrapola a tentativa de meramente ficcionalizar o conflito. Ao retratar a diminuição dos humanos, que foram praticamente reduzidos ao tamanho de “insetos”, o que está em questão não é mais o poder que certos homens detinham, nem o capital, e sim a sobrevivência. Melhor dizendo, o que está em questão é o modern way of life e o sistema ao qual se subordina; o que está em questão nessa obra é a própria vida e a maneira pela qual a conduzimos, que mundo criamos e desejamos para nós mesmos.

O que não deixa de ser uma forma interessante de pensar a História e articulá-la com a Literatura.

Recebido em fevereiro/2006; aprovado em maio/2006.

Notas

^  * Professora Doutora do IEL/Unicamp e Coordenadora de Projeto Temático da Fapesp sobre Monteiro Lobato. E-mail: marisal@uol.com.br. Este texto foi escrito junto com Tâmara Abreu (doutoranda em Teoria e História Literária do IEL/Unicamp), Thaís de Mattos Albieri (dDoutoranda em Teoria e História Literária do IEL/Unicamp), Káthia Chiaradia (mestranda em Teoria e História Literária do IEL/Unicamp), Mariana Baldo de Gênova (mestranda em Teoria e História Literária do IEL/Unicamp, Bolsista da Fapesp), Emília Raquel Mendes (mestranda em Teoria e História Literária do IEL/Unicamp, bolsista da Fapesp), Jacqueline Negrini Rocha (mestranda em Teoria e História Literária do IEL/Unicamp, bolsista da Fapesp), Raquel Afonso da Silva (mestranda em Teoria e História Literária do IEL/Unicamp, bolsista da Fapesp) e Lucila Bassan Zorzato (mestranda em Teoria e História Literária do IEL/Unicamp, bolsista da Fapesp).

^  1 LOBATO, M. A Barca de Gleyre. 2o tomo, 1 ed. São Paulo, Brasiliense, 1946, 360p.

^  2 Em anos posteriores, alguns títulos são acrescentados às Obras Completas.

^  3 O local referido é, provavelmente, Campos do Jordão, onde D. Purezinha acompanhava o filho Edgard, que sofria de tuberculose.

^  4 LOBATO, Cartas Escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1969. Carta provavelmente de 1942, p. 241.

^  5 Os dados relativos à tiragem e edições da obra vêm da pesquisa de Adriana Silene Vieira, para seu dou-torado junto ao Arquivo da Companhia Editora Nacional, bem como de documentos do Fundo Monteiro Lobato (FML) depositado no Centro de Documentação “Alexandre Eulálio” (Cedae) do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

^  6 LOBATO, A Chave do Tamanho. 40 ed. São Paulo, Brasiliense, 1994, 86 p. As citações subseqüentes têm a mesma referência.

^  7 Op. cit, p. 104.

^  8 LOBATO, America.. 12 ed. São Paulo, Brasiliense, 1964, p. 67.

^  9 Id., História das Invenções. 14 ed. São Paulo, Brasiliense, s.d., p. 516.

^  10 Id., História do Mundo para as Crianças. 14 ed. São Paulo, Brasiliense., s.d., p. 402.

^  11 Id., A Onda Verde e O Presidente Negro. 11 ed. São Paulo, Brasiliense, 1964.

^  12 Id., Cartas Escolhidas, p. 131.

^  13 ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. Rio de Janeiro, Globo, 1998 (Col. Os Pensadores).

^  14 ABRAMOVICH, F. Quem educa quem? São Paulo, Summus, 2002 (Novas Buscas em Eeducação). 15 BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança o brinquedo e a educação. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2002.

^  16 VIEIRA, A. S.Viagens de Gulliver ao Brasil: Estudo das adaptações de Gulliver’s Travels por Carlos Jansen e por Monteiro Lobato. Tese de Doutorado. Campinas, Unicamp, IEL, 2004.

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