Criei para mim algumas ideias teóricas sobre o drama. Algum dia, se houver tempo e vagar, talvez as escreva e de a lume.
O meu protótipo seria alguma coisa entre o teatro inglês, o teatro espanhol e o teatro grego ― a força das paixões ardentes de Shakespeare, de Marlowe e Otway, a imaginação de Calderón de la Barca e Lope de Vega, e a simplicidade de Ésquilo e Eurípides ― alguma coisa como Goethe sonhou, e cujos elementos eu iria estudar numa parte dos dramas dele ― em Goetz de Berlichingen, Clavijo, Egmont, no episódio da Margarida do Fausto ― e a outra na simplicidade ática de sua Ifigênia. Estudálo-ia talvez em Schiller, nos dois dramas do Wallenstein, nos Salteadores, no D. Carlos: estudá-lo-ia ainda na Noiva de Messina, com seus coros, com sua tendência à regularidade.
É um tipo talvez novo, que não se parece com o misticismo do teatro de Werner, ou as tragédias teogônicas de Oehlenschläger e ainda menos com o de Kotzebue ou o de Victor Hugo e Dumas. Não se pareceria com o de Ducis, nem com aquela tradução bastarda, verdadeira castração do Otelo de Shakespeare, feita pelo poeta sublime do Chatterton, o conde Vigny. Quando não se tem alma adejante para emparelhar com o gênio vagabundo do autor de Hamlet, haja ao menos modéstia bastante para não querer emendá-la. Por isso o Otelo de Vigny é morto. É uma obra de talento, mas devia ser um rasgo de gênio.
Emendá-lo? Pobres pigmeus que querem limar as monstruosidades do Colosso! Raça de Liliput que queria aperfeiçoar os membros do gigante ― disforme para eles ― de Gulliver!
E digam-me: que é o disforme? Há aí um anão ou um gigante? Não é assim que eu o entendo. Haveria enredo, mas não a complicação exagerada da comédia espanhola. Haveria paixões, porque o peito da tragédia deve bater, deve sentir-se ardente ― mas não requintaria o horrível, e não faria um drama daqueles que parecem feitos para reanimar corações-cadáveres, como a pilha galvânica as fibras nervosas do morto!
Não: o que eu penso é diverso. É uma grande ideia que talvez nunca realize. É difícil encerrar a torrente de fogo dos anjos decaídos de Milton ou o pântano de sangue e lágrimas do Alighieri dentro do pentâmetro de mármore da tragédia antiga. Contam que a primeira ideia de Milton foi fazer do Paraíso Perdido uma tragédia ― um mistério ― não sei o quê: não o pôde; o assunto transbordava, crescia; a torrente se tornava num oceano. É difícil marcar o lugar onde para o homem e começa o animal, onde cessa a alma e começa o instinto ― onde a paixão se torna ferocidade. É difícil marcar onde deve parar o galope do sangue nas artérias, e a violência da dor no crânio. Contudo, deve haver ― e o há ― um limite às expansões do ator, para que não haja exageração, nem degenere num papel de fera o papel de homem. O Pobre Idiota tem esse defeito, entre mil outros. A cena do subterrâneo é interessante, mas é de um interesse semelhante àquele que excitava o Jocko ou o homem das matas ― aquele macaco representado por Morietti que fazia chorar a plateia.
O Pobre Idiota representa o idiotismo do homem caído na animalidade. O ator fez o papel que devia ― não exagerou, representou a fera na sua fúria ― uma fera, onde por um enxerto caprichoso do imitador de Hauser havia um amor poético por uma flor ― e uma estampa!
A vida e só a vida! mas a vida tumultuosa, férvida, anelante, às vezes sanguenta-eis o drama. Se eu escrevesse, se minha pena se desvairasse na paixão, eu a deixaria correr assim. Iago enganaria o Mouro, trairia Cássio, perderia Desdêmona e desfrutaria a bolsa de Rodrigo. Cássio seria apunhalado na cena. Otelo sufocaria sua veneziana com o travesseiro, escondê-la-ia com o cortinado quando entrasse Emília: chamaria sua esposa ― a whore ― e gabar-se-ia de seu feito. O honest, most honest Iago viria ver a sua vítima, Emília soluçando a mostraria ao demônio; o africano delirante, doido de amor, doido de a ter morto, morreria beijando os lábios pálidos da veneziana. Hamlet no cemitério conversaria com os coveiros, ergueria do chão a caveira de Yorick, o truão; Ofélia coroada de flores cantaria insana as balatas obscenas do povo: Laertes apertaria nos braços o cadáver da pobre louca. Orlando no What you will penduraria suas rimas de Rosalinda nos arvoredos dos Cevennes. Isto seria tudo assim.
Se eu imaginasse o Otelo, seria com todo o seu esgar, seu desvario selvagem, com aquela forma irregular que revela a paixão do sangue. É que as nódoas de sangue quando caem no chão não têm forma geométrica. As agonias da paixão, do desespero e do ciúme ardente quando coam num sangue tropical não se derretem em alexandrinos, não se modulam nas falas banais dessa poesia de convenção que se chama ― conveniências dramáticas.
Mas se eu imaginasse primeiro a minha ideia, se a não escrevesse como um sonâmbulo, ou como falava a Pitonisa convulsa agitando-se na trípode, se pudesse, antes de fazer meu quadro, traçar as linhas no painel, fá-lo-ia regular como um templo grego ou como a Atália, arquétipa de Racine.
São duas palavras estas, mas estas duas palavras têm um fim: é declarar que o meu tipo, a minha teoria, a minha utopia dramática, não é esse drama que aí vai. Esse é apenas como tudo que até hoje tenho esboçado, como um romance que escrevi numa noite de insônia ― como um poema que cismei numa semana de febre ― uma aberração dos princípios da ciência, uma exceção às minhas regras mais íntimas e sistemáticas. Esse drama é apenas uma inspiração confusa, rápida ― que realizei à pressa como um pintor febril e trêmulo.
Vago como uma aspiração espontânea, incerto como um sonho; como isso o dou, tenham-no por isso. Quanto ao nome, chamem-no drama, comédia, dialogismo: não importa. Não o fiz para o teatro: é um filho pálido dessas fantasias que se apoderam do crânio e inspiram a Tempestade a Shakespeare, Beppo e o IX Canto de D. Juan a Byron; que fazem escrever Anunciata e O Conto de Antônia a quem é Hoffmann ou Fantasio ao poeta de Namouna.