Era há cinco anos, e na época das câmaras. A Rua do Ouvidor é nessa época o grande pasmatório da capital; ali vão ter os deputados e os curiosos, os políticos por ofício e por devoção. À porta da loja em que vemos Daniel estão dois deputados conversando; trata-se de uma interpelação para o dia seguinte. Daniel, encostado ao mostrador, do lado da rua, fuma negligentemente um charuto, e olha distraído algumas mulheres que vão passando.
De quando em quando lhe chega aos ouvidos algumas palavras truncadas da conversa política; a única impressão que produz no rapaz é um sorriso.
No fim de algum tempo, parou diante de Daniel um rapaz baixinho, representando ter trinta anos, nem bonito nem feio, mas elegantemente vestido. Eu diria que era um dandy, se a novíssima expressão francesa petit crevé não correspondesse melhor ao tipo do recém-chegado.
— Adeus, Daniel! disse este.
— Como estás, Valadares? Que fazes?
— Faço horas para jantar. São três e meia, não? Queres tu vir jantar comigo?
— Pois sim.
Valadares encostou-se também ao mostrador, cavalgou o pince-nez, e pôs-se a olhar para quem passava. Houve entre ambos um silêncio de alguns minutos.
No entanto, a conversa dos deputados tornara-se animada, a ponto que Daniel voltou rapidamente a cabeça, justamente na ocasião em que um deles tirava do bolso um papel que ia ler ao outro.
Daniel sorriu.
— Quem são estes dois sujeitos? perguntou Valadares.
— Deputados.
Novo silêncio, interrompido por Valadares:
— Sabes que o Abreu fugiu? disse ele.
— Por quê?
— Achou-se alcançado na caixa do patrão; e não querendo expor-se a alguma vergonha, achou mais prudente retirar-se da cena.
A resposta de Daniel foi sacudir a cinza do charuto.
Valadares continuou:
— Nem sabes a causa disto?
— A Mariquinhas?
— Justo.
— Era previsto. Quando fugires também...
— Eu?
— Tu.
— Mas se eu tenho caixa à minha disposição...
— Não se foge só do Rio de Janeiro, foge-se também do mundo.
— Um suicídio?
— Isso mesmo.
— Assim era eu tolo!
— Quando fugires do planeta, eu saberei logo que é por causa da Luisinha.
— Não digas mal da pequena...
— Bem sei que é um anjo, disse Daniel; mas isso não impede que lhe sacrifiques a vida; acho até natural...
— Com que cara ficarás quando eu te der uma notícia...
— Que notícia?
— Vou casar-me.
— Com ela?
— Pateta! vou casar com uma conhecida nossa: uma das Seabra.
— Qual delas?
— A Amélia.
— Creio que são minhas primas remotas.
— Vê lá se um homem, às portas do casamento, pode lá matar-se por...
Daniel sorriu batendo com a bengala na ponta do pé, e replicou:
— Mas isso e o que eu digo é a mesma coisa. Casar é fugir ao mundo; a bênção nupcial não é mais do que uma encomendação em regra. Ora, se tu te metes na sepultura do casamento, é justamente por causa da Luisinha, cujos caprichos já não estão de acordo com os teus sentimentos.
Pode-se afirmar que esta meia dúzia de palavras produziu o maior discurso que Daniel fez em toda a sua vida. Por isso mesmo, apenas as proferiu, recolheu-se ao silêncio e não respondeu mais às mil razões que Valadares lhe dava relativamente ao casamento com a Amélia e ao rompimento com a Luísa.
Desculpem-me se resumo no mesmo período estes dois nomes: o de uma noiva e o de uma cortesã. Estavam unidas também na memória do rapaz, andam por aí ligados na vida; eu não faço mais do que copiar.
Valadares acabava de dar as mil razões do seu casamento, quando à porta da loja parou um carro; o lacaio foi abrir a portinhola e saíram de dentro duas senhoras: uma velha, ainda conservada, e uma rapariga de cerca de vinte anos.
Um dos deputados que estavam à porta conhecera-as apenas parou o carro e foi oferecer-lhes a mão. Saiu primeiramente a velha, e depois a rapariga; entraram ambas na loja.
Daniel tinha, como um amigo meu, a mania de examinar os pés às mulheres.
— A mulher, dizia ele, é um livro; o pé é o índice do livro.
E já por aqui vê o leitor que Daniel tinha outra mania, que era a dos aforismos e sentenças.
Com a mania de examinar o pé às mulheres, Daniel não soube se a rapariga era bonita ou feia, morena ou clara; soube, apenas, que tinha um bonito pé. Quando quis olhar-lhe para a cara, já ela havia entrado na loja. Mas nem procurou vê-la através da vidraça; limitou-se a voltar-se para Valadares e perguntar:
— Que gente é esta?
— É da família do B...
B... era um deputado do Norte.
Valadares olhou pela vidraça.
— Vê, Daniel, vê, como é bonita!
Daniel voltou o rosto e viu com efeito que a pequena era bonita; mas não soltou nenhuma exclamação.
As duas senhoras pouco tempo se demoraram; alguns minutos depois, chegaram à porta para entrar no carro. A moça ficou justamente ao lado de Daniel. Este olhou para ela, a fim de confirmar a primeira opinião, e deu com os olhos dela que, por acaso, se cravaram nele. À claridade, a moça pareceu-lhe mais bonita do que a princípio; mas não teve tempo de admirá-la, porque ela, fazendo com a boca um gesto de desdém, voltou-lhe as costas e encaminhou-se para o carro, cuja portinhola estava aberta.
A velha entrou depois e o carro partiu logo; Daniel olhou para dentro: a moça ia conversando com a velha, e sem prestar atenção a coisa alguma.
Toda esta cena, aliás rápida, escapou a Valadares; Daniel, um pouco despeitado com o gesto da moça, sorriu-se e tirou o relógio do bolso dizendo:
— Vamos jantar?
— Vamos, disse Valadares.
Na ocasião em que iam descer para o Hotel Inglês (onde Valadares jantava habitualmente), Daniel viu na calçada uma liga, abaixou-se e apanhou-a.
— Será a liga da pequena? perguntou Valadares.
— Honny soit qui mal y pense! respondeu Daniel sorrindo e guardando a liga no bolso.
Foram jantar.
Durante o jantar, não se conversou mais no episódio da liga, nem da moça do Norte. Apenas, quando veio o café, Daniel perguntou onde morava aquela família, e soube que em Mata-cavalos. A conversa não passou disso.
A verdade histórica pede que se diga que ainda durante essa tarde a lembrança da dona da liga perturbou um pouco o espírito de Daniel; mas posso afirmar que à noite já ele de nada mais se lembrava.
Quando voltou à casa, atirou a liga para dentro de uma secretária, e nisto ficou tudo.