Protestos de resignação em amor são como sentenças escritas na areia; desfazem-se ao primeiro vento. Daniel, que era o tipo da indiferença, começava a sentir a dolorosa convicção de que lhe seria difícil viver sem aquela mulher. Quando chegou a casa, recordou todos os episódios da noite, repetiu entre si as palavras trocadas com Augusta, arrependeu-se das que proferira; por um instante, teve idéia de ir-lhe pedir perdão. O tiro da peça ainda o achou acordado.
Se durante esse tempo, Daniel pudesse estar no quarto de Augusta, veria a luz da vela confundir-se com os raios da manhã. A moça dormiu apenas duas horas e ainda o seu sono foi sobressaltado. Seriam as mesmas impressões? Eu poderia, no interesse do romance, deixar em claro este ponto; mas prefiro dizer francamente aos leitores os sentimentos dos meus personagens.
Augusta não velara pelo mesmo motivo que Daniel. Era outro. Era despeito. A orgulhosa Augusta sentia-se envergonhada com a cena que se passara durante a noite. Humilhara-se com a fácil resignação de Daniel; era a sua primeira derrota.
O seu primeiro pensamento foi um pensamento vulgar; lembrou-se de vingar-se do moço, vendo-o a seus pés. Mas, para alcançá-lo, não seria preciso conceder-lhe esperanças, e estas não exprimiam a confissão de um triunfo, que lhe parecia odioso?
Cálculos inúteis, dirá o leitor de boa fé, os desta moça provinciana, que fazia do amor um jogo de xadrez. Que importa? eu narro a verdade. Confesso que era mais bonito, mais juvenil, mais digno, resolver simplesmente pelo coração, amar ou dar de tábua ao pretendente, conforme lhe falasse o sentimento. Mas, se assim fosse, o romance acabaria e seria outra coisa que não a história que estou relatando.
Quando Augusta se levantou tinha os olhos pesados; a vigília deixara-lhe impressos os seus vestígios. E eram belos os seus olhos, não sei até se mais poéticos, com a languidez do cansaço, do que com a viveza natural. Direi mais: aquele aspecto tornara-a mais mulher, porque Augusta tem no olhar e nas feições um quê de enérgico e severo, que indicava antes um caráter masculino.
Passaram-se dias sem que os dois se encontrassem: nem Daniel foi à casa de Augusta, nem esta se mostrou à janela.
Numa segunda-feira, apareceu Valadares em casa de Daniel.
Convidou-o para um passeio à Tijuca em companhia de várias famílias.
— A Augusta vai, disse ele,
— Que tenho eu com isso? perguntou Daniel.
Valadares sorriu.
— Que tens com isto? cuidei que tinhas alguma coisa... Não se amam?
— Ela tem-me ódio.
— É caminho para o amor, ouvi dizer; e tu?
— Desprezo.
— Dizem que também é um atalho que vai ter à grande cidade do conjugo vobis.
— Para a tua cidade! disse Daniel, sorrindo maliciosamente.
Valadares suspirou.
— Para a minha cidade, tens razão! Mas antes não fosse!
— A coisa vai mal?
— Vai o pior possível.
— Hão de acomodar-se... Tu tratarás de ver uma compensação fora das fronteiras conjugais; e ela contentar-se-á com as modas novas... Escusas de franzir a testa; é esta a tua convicção e a minha. O casamento, meu caro Valadares, é uma loteria; o teu bilhete saiu branco. É dinheiro perdido, ou antes dinheiro ganho, porque ainda que percas tudo, ainda te fica o dinheiro...
Valadares engoliu dificilmente a observação de Daniel, falou outra vez no passeio à Tijuca e assentou-se que Daniel iria.
O passeio fez-se daí a oito dias.
Entre outras pessoas achavam-se lá Augusta e Luiz.
Daniel ignorava os sentimentos de Luiz em relação a Augusta; demais, conhecia-o pouco.
Na primeira ocasião que pôde alcançar, Daniel perguntou a Augusta se estava com a mesma resolução em relação a ele.
— A mesma, respondeu Augusta.
Daniel inclinou-se e começou a falar da beleza do sítio em que se achava.
Augusta ouviu-o não sem espanto.
— Tem grande amor à natureza? perguntou ela.
— Imenso. A natureza não fala.
— Os poetas dizem o contrário, retorquiu a moça sorrindo.
— E dizem bem; a natureza fala, mas fala como uma alma deve falar a outra, sem intermédio dos lábios. Ora, eu tenho notado que o falar é perigoso para as nossas ilusões; uma palavra destrói às vezes um mundo.
Augusta mordeu os lábios.
— Veja, disse Daniel, colhendo uma flor agreste que lhe ficava ao alcance da mão. Há nada mais do que isto? Esta flor diz mil coisas justamente porque não pode articular o que me diz: o perfume é a sua linguagem; esta cor branca ligada com esta cor azul formam uma frase que eu compreendo sem explicar. A coitadinha desta flor não pode fazer mal; mas, se eu por um capricho qualquer, achasse na sua linguagem alguma coisa que me ofendesse, tinha o remédio nas mãos; destruí-la-ia assim...
E Daniel esmagou a flor entre os dedos.
Augusta olhou para a flor e para Daniel. Nem um gesto de surpresa ou de despeito; apenas sorriu, dizendo:
— Mas, ainda esmagada entre as suas mãos, essa flor vale mais que o senhor, porque...
Luiz aproximou-se do grupo quando Augusta ia continuar.
— D. Augusta, disse ele; sua mãe quer falar-lhe.
Augusta foi ter com a mãe.
— Está um bonito dia, disse Luiz a Daniel.
— Está, respondeu o rapaz distraído.
E voltou os olhos para Augusta que se afastava.
Luiz viu o gesto e procurou adivinhar o olhar de Daniel. Palpitou-lhe o coração mais fortemente; que haveria entre eles?
Alguns minutos durou o silêncio; no fim deles, Daniel voltou-se para Luís e encetou uma conversa; Luiz respondeu por monossílabos ao interlocutor, até que o jantar veio pôr termo à situação esquerda em que se achavam os dois.