O que importa a Vida e o que importa a Morte, obscuro velhinho que te foste, operário humilde da terra, que levantaste as torres das igrejas e os tetos das casas, que fundaste os alicerces delas sobre pedra e areia como os teus únicos Sonhos.
Deixa sinfonicamente cantar sobre ti a sacrossanta alegria branca e forte do profundo Reconhecimento que te votei na existência! Deixa correr sobre o teu virtuoso flanco de lutador, sobre as tuas mãos rudes e abençoadas, sobre os teus olhos hipocondríacos de senil desterrado de Reinos ignotos, sobre o teu coração suave de cordeiro imaculado, as grandes e maravilhosas lágrimas repurificantes que nesta hora sublimizam o meu ser de uma divinização incomparável! Velho tronco robusto de onde seivas prodigiosas de Afeição porejaram sempre! A tua alma, blindada de uma honra ingênua, antiga e clássica, parecia-se reveladoramente com a natureza — alma franca e virgem, espontânea nos seus fenômenos, puro bloco inteiriço de Sentimento, de onde os cinzelários do Sonho cinzelariam com a sua estética soberana as criações imortais.
A claridade e a harmonia de uma bondade primitiva davam à tua alma, não a consagração espartana unicamente, mas uma simpleza e propriedade genésica de selvas que geram o Desconhecido e o Vago da Pureza, sem contactos egoísticos do mundo. Através da tu'alma eu lia, em caracteres indeléveis, a significação eloqüente do teu fenômeno triste, do teu simpático e lhano irradiamento na Existência!
Para os que têm a boa sombra, o Angelus meigo do Amor, para os que sabem venerar e perdoar do fundo dos grandes Silêncios da alma, a flor genuína da tua sensibilidade tinha esse aroma oculto e amargo que se não define — esse aroma acerbo que vêm das naturezas chãs mas sempre castas, inevitavelmente sepultadas no obscuro centro fatal do seu Destino.
Se aflito, se desolado, se doloroso tu foste, como que esse sentimento era alado, era etéreo, isolado como tu andavas das causas originais de tudo, no relevo de rocha viva da tua Ignorância pura, mergulhado até ao fundo no mar augusto, formidável e sem raias da crença em Deus!
A tua figura paternal, que a condição ínfima das frívolas categorias sociais obumbrava profundamente na terra, tinha para mim o encanto mítico de vetusto deus dalguma ilha abandonada em regiões, longe, vivendo resignado, paciente, sem queixas, na iluminação teatral, flagrante e acabrunhadora de modernas e autoritárias Civilizações, como o legítimo representante dos seres humanos.
Minh'alma ao cuidar em ti, a considerar nos teus dias, a interpretar a tua mudez, a ver as curiosidades e instintivos caprichos dos teus movimentos de ser, quedava-se numa espécie dessa melancolia, dessa nuance aquebrantadora, desse emovente langor de um verso verlainiano que melancoliza tanto.
Eu, longe que andava, ausente do teto onde exalaste o derradeiro gemido, não te pude ver no teu belo e grave desdém tranqüilo de morto. Não pude meditar nas ironias secretas e significativas da morte às vaidades da vida. Não te fui fechar os olhos, compungidamente, com a delicadeza amorável das minhas mãos trêmulas, nem passar para eles, em fluidos ardentes, o magoado adeus dos meus olhos.
Não te pude dizer, de manso, bem junto aos teus olhos e coração moribundos, com toda a volúpia da minha dor, as untuosas e extremas palavras da separação, as cousas inefáveis e gementes no dilacerante momento em que os nossos braços abandonam, para nunca mais apertar, os amados braços que já estão vencidos, entregues ao renunciamento de tudo e que nós tanto e tão acariciadamente apertamos.
Mas, nada importa a Vida e nada importa a Morte!
O encanto do teu ser foi obscuro; a graça do teu Bem foi toda fugitiva. Porém do seio imenso da minh'alma, do fundo oceânico de soluços de que ela é feita tu emerges e emergirás sempre, proba e doce figura, caridoso fanal do meu passado, que enfim me iluminaste com o clarão da Bondade e me trouxeste com a tua bênção paternal de grande Humilde a Fé sacrificante e salvadora das Resignações para atingir as Esferas supremas do Absoluto.
Lá, no Inexorável, na perpétua Dispersão, não sentirás mais o grosso rugir da miséria humana, a mão de ferro da prepotência esmagando tua subjetividade modesta.
Todas as ferocidades, todas as durezas, enfim, cessaram no fundo Silêncio negro.
Rebrilharam e ressurgiram as Solenidades transfiguradoras da Saudade! Enfim, és morto, agora! Posso evocar-te de lá das sombrias e glaciais imensidades! Posso sentir-te através do enevoamento de distâncias infinitas estreladas de lágrimas! Posso rasgar pelo Azul portas de Devotamento celestial à procura da tua Imagem. Iluminar a tua funda noite de morte com a triste luz saudosa da minha vida. Tu, eternamente, participarás das formas incoercíveis...
E eu irei, por este lutulento mundo, com a cabeça um tanto pendida de dolência, como que vagamente aplicando o ouvido a um ponto distante, escutando, enlevado, em arroubos íntimos, secreta música difusa e longínqua de Além, que parece chamar-me para esse rítmico Indefinido onde afinal te dispersaste e sumiste. E, essa música, de atrativos sutis, letíficas seduções, de místicos e transcendentalizadores acordes, fluindo aos meus ouvidos, continuará a chamar-me, a chamar-me, misteriosamente a chamar-me...