==NOTA PRELIMINAR==
Esta comédia foi expressamente escrita para ser representada em um sarau literário e artístico dado a 22 de novembro do ano passado (1862), em casa de alguns amigos na rua da Quitanda.
Os cavalheiros que se encarregaram dos diversos papéis foram os Srs. Moraes Tavares, Manoel de Mello, Ernesto Cybrão, Bento Marques, Insley Pacheco, Arthur Napoleão, Muniz Barreto e Carlos Schramm. O desempenho, como podem atestar os que lá estiveram, foi muito acima do que se podia esperar de amadores.
Pela representação da comédia se abriu o sarau, continuando com a leitura de escritos poéticos e a execução de composições musicais.
Leram composições poéticas os Srs.: conselheiro José Feliciano de Castilho, fragmentos de uma excelente tradução do Fausto; Bruno Seabra, fragmentos do seu poema D. Fuas, do gênero humorístico, em que a sua musa se distingue sempre; Ernesto Cybrião, uma graciosa e delicada poesia - O Campo Santo; Dr. Pedro Luiz - Os voluntários da morte, ode eloqüente sobre a Polônia; Faustino de Novaes, uns sentidos versos de despedida a Arthur Napoleão; finalmente, o próprio autor da comédia.
Executaram excelentes pedaços de música os senhores: Arthur Napoleão, A. Arnaud, Schramm e Wagner, pianistas; Muniz Barreto e Bernardelli, violinistas; Tronconi, harpista; Reichert, flautista; BoIgiani, Tootal, Wilmoth, Orlandini e Ferrand, cantores.
A este grupo de artistas é de rigor acrescentar o nome do Sr. Leopoldo Heck, cujos trabalhos de pintura são bem conhecidos, e que se encarregou de ilustrar o programa do sarau afixado na sala.
O sarau era o sexto ou sétimo dado pelos mesmos amigos, reinando neste, como em todos, a franca alegria e convivência cordial a que davam lugar o bom gosto da direção e a urbanidade dos diretores.
1863.
PERSONAGENS
editar- LUCIANO MARTINS, deputado
- Dr. SILVEIRA
- JOSÉ PACHECO
- CARLOS BASTOS
- MATEUS
- LUIZ PEREIRA
- MÜLLER
- AGAPITO
Ação - Rio de Janeiro
EM CASA DE MARTINS
Sala elegante
CENA I
editarMARTINS, SILVEIRA
SILVEIRA (entrando) - Primo Martins, abraça este ressuscitado!
MARTINS - Como assim!
SILVEIRA - Não imaginas. Senta-te, senta-te. Como vai a prima!
MARTINS - Está boa. Mas que foi!
SILVEIRA - Foi um milagre. Conheces aquele meu alazão!
MARTINS - Ah! basta; história de cavalos... que mania!
SILVEIRA - É um vÍcio, confesso. Para mim não há outros: nem fumo, nem mulheres, nem jogo, nem vinho; tudo isso que muitas vezes se encontra em um só homem, reuni-o eu na paixão dos cavalos; mas é que não há nada acima de um cavalo soberbo, elegante, fogoso. Olha, eu compreendo Calígula.
MARTINS - Mas, enfim...
SILVEIRA - A história! É simples. Conheces o meu Intrépido! É um lindo alazão! Pois ia eu a pouco, comodamente montado, costeando a praia de Botafogo; ia distraído, não sei em que pensava. De repente, um tílburi, que vinha em frente, esbarra e tomba. O Intrépido espanta-se; ergue as patas dianteiras, diante da massa que ficara defronte, donde saíam gritos e lamentos. Procurei contê-lo, mas qual! Quando dei por mim rolava muito prosaicamente na poeira. Levantei-me a custo; todo o corpo me doía; mas enfim pude tomar um carro e ir mudar de roupa. Quanto ao alazão, ninguém deu por ele; deitou a correr até agora.
MARTINS - Que maluco!
SILVEIRA - Ah! mas as comoções... E as folhas amanhã contando o fato: "DESASTRE. - Ontem, o jovem e estimado Dr. Silveira Borges, primo do talentoso deputado Luciano Alberto Martins, escapou de morrer... etc." Só isto!
MARTINS - Acabaste a história do teu desastre!
SILVEIRA - Acabei.
MARTINS - Ouve agora o meu.
SILVEIRA - Estás ministro, aposto!
MARTINS - Quase.
SILVEIRA - Conta-me isto. Eu já tinha ouvido falar na queda do ministério.
MARTINS - Faleceu hoje de manhã.
SILVEIRA - Deus lhe fale n'alma!
MARTINS - Pois creio que vou ser convidado para uma das pastas.
SILVEIRA - Ainda não foste!
MARTINS - Ainda não; mas a coisa já
é tão sabida na cidade, ouvi isto em tantas partes, que julguei dever voltar para casa à espera do que vier.
SILVEIRA - Muito bem! Dá cá um abraço! Não é um favor que te fazem; mereces, mereces... Ó primo, eu também posso servir em alguma pasta!
MARTINS - Quando houver uma pasta dos alazões... (Batem palmas). Quem será!
SILVEIRA - Será a pasta!
MARTINS - Vê quem é.
(Silveira vai à porta. Entra Pacheco).
==CENA II==
Os mesmos, José Pacheco
PACHECO - V. Excia. dá-me licença!
MARTINS - Pode entrar.
PACHECO - Não me conhece!
MARTINS - Não tenho a honra.
PACHECO - José Pacheco.
MARTINS - José...
PACHECO - Estivemos há dois dias juntos em casa do Bernardo. Fui-lhe apresentado por um colega da Câmara.
MARTINS - Ah! (A Silveira, baixo). Que me quererá!
SILVEIRA (baixo) - Já cheiras a ministro.
PACHECO (sentando-se) - Dá licença!
MARTINS - Pois não (Senta-se).
PACHECO - Então que me diz à situação! Eu já previa isto. Não sei se teve a bondade de ler uns artigos meus assinados - Armand Carrel. Tudo o que acontece hoje está lá anunciado. Leia-os e verá. Não sei se os leu!
MARTINS - Tenho uma idéia vaga.
PACHECO - Ah! pois então há de lembrar-se de um deles, creio que é o IV, não, é o V. Pois nesse artigo está previsto o que acontece hoje, tim tim por tim tim.
SILVEIRA - Então V. S. é profeta!
PACHECO - Em política, ser lógico é ser profeta. Apliquem-se certos princípios a certos fatos, a conseqüência é sempre a mesma. Mas é mister que haja os fatos e os princípios...
SILVEIRA - V. S. aplicou-os!...
PACHECO - Apliquei, sim, senhor, e adivinhei. Leia o meu V artigo e verá com que certeza matemática pintei a situação atual. Ah! ia-me esquecendo (a Martins), receba V. Excia. os meus sinceros parabéns.
MARTINS - Por que!
PACHECO - Não foi chamado para o ministério!
MARTINS - Não estou decidido.
PACHECO - Na cidade não se fala em outra coisa. É uma alegria geral. Mas, por que não está decidido! Não quer aceitar!
MARTINS - Não sei ainda.
PACHECO - Aceite, aceite! É digno; e digo mais, na atual situação, o seu concurso pode servir de muito.
MARTINS - Obrigado.
PACHECO - É o que lhe digo. Depois dos meus artigos; principalmente o V, não é lícito a ninguém recusar uma pasta, só se absolutamente não quiser servir o país. Mas nos meus artigos está tudo, é uma espécie de compêndio. De mais, a situação é nossa; nossa, repito, porque eu sou do partido de V. Excia.
MARTINS - É muita honra.
PACHECO - Uma vez que se compenetre da situação, está tudo feito. Ora, diga-me, que política pretende seguir!
MARTINS - A do nosso partido.
PACHECO - É muito vago isso. O que eu pergunto é se pretende governar com energia ou com moderação. Tudo depende do modo. A situação exige um, mas o outro também pode servir...
MARTINS - Ah!
SILVEIRA (á parte) - Que maçante!
PACHECO - Sim, a energia é... é isso, a moderação, entretanto... (Mudando o tom). Ora, sinto deveras que não tivesse lido os meus artigos, lá vem tudo isso.
MARTINS - Vou lê-los... Creio que já os li, mas lerei segunda vez. Estas coisas devem ser lidas muitas vezes.
PACHECO - Não tem duvida, como os catecismos. Tenho escrito outros muitos; ha doze anos que não faço outra coisa; presto religiosa atenção aos negócios do Estado e emprego-me em prever as situações. O que nunca me aconteceu foi atacar ninguém; não vejo as pessoas, vejo sempre as idéias. Sou capaz de impugnar hoje os atos de um ministro e ir amanhã almoçar com ele.
SILVEIRA - Vê-se logo.
PACHECO - Está claro!
MARTINS (baixo a Silveira) - Será tolo ou velhaco?
SILVEIRA (baixo) - Uma e outra coisa. (Alto) Ora, não me dirá, com tais disposições, por que não segue a carreira política? Por que se não propõe a uma cadeira no parlamento?
PACHECO - Tenho meu amor próprio, espero que ma ofereçam.
SILVEIRA - Talvez receiem ofendê-lo.
PACHECO - Ofender-me?
SILVEIRA - Sim, a sua modéstia...
PACHECO - Ah! modesto sou; mas não ficarei zangado.
SILVEIRA - Se lhe oferecerem uma cadeira... está bom. Eu também não; nem ninguém. Mas eu acho que se devia propor; fazer um manifesto, juntar os seus artigos, sem faltar o V...
PACHECO - Esse principalmente. Cito aí boa soma de autores. Eu, de ordinário, cito muitos autores.
SILVEIRA - Pois é isso, escreva o manifesto e apresente-se.
PACHECO - Tenho medo da derrota.
SILVEIRA - Ora, com as suas habilitações...
PACHECO - É verdade, mas o mérito é quase sempre desconhecido, e enquanto eu vegeto nos - a pedidos dos jornais, vejo muita gente chegar á cumeeira da fama. (A Martins). Ora, diga-me, o que pensará V. Excia. quando eu lhe disser que redigi um folheto e que vou imprimi-lo?
MARTINS - Pensarei que...
PACHECO (metendo a mão no bolso) -Aqui lho trago (tira um rolo de papel). Tem muito que fazer?
MARTINS - Alguma coisa.
SILVEIRA - Muito, muito.
PACHECO - Então não pode ouvir o meu folheto?
MARTINS - Se me dispensasse agora...
PACHECO - Pois sim, em outra ocasião. Mas, em resumo, é isto: trato dos meios de obter uma renda três vezes maior do que a que temos sem lançar mão de empréstimos, e mais ainda, diminuindo os impostos.
SILVEIRA - Oh!
PACHECO (guardando o rolo) - Custou-me muitos dias de trabalho, mas espero fazer barulho.
SILVEIRA (À parte) - Ora espera... (Alto) Mas então, primo...
PACHECO - Ah! é primo de V. Excia.?
SILVEIRA - Sim, senhor.
PACHECO - Logo vi, há traços de família; vê-se que é um moço inteligente. A inteligência é o principal traço da família de Vs. Excias. Mas dizia...
SILVEIRA - Dizia ao primo que vou decididamente comprar uns cavalos do Cabo magníficos. Não sei se os viu já. Estão na cocheira do major...
PACHECO - Não vi, não, senhor.
SILVEIRA - Pois, senhor, são magníficos! É a melhor estampa que tenho visto, todos do mais puro castanho, elegantes, delgados, vivos. O major encomendou trinta; chegaram seis; fico com todos. Vamos nós vê-los?
PACHECO (aborrecido) - Eu não entendo de cavalos. (Levanta-se). Hão de dar-me licença. (A Martins) V. Excia. janta às cinco?
MARTINS - Sim, senhor, quando quiser...
PACHECO - Ah! hoje mesmo, hoje mesmo. Quero saber se aceitará ou não. Mas se quer um conselho de amigo, aceite, aceite. A situação está talhada para um homem como V. Excia. Não a deixe passar. Recomendações a toda á sua família. Meus senhores. (Da porta). Se quer, trago-lhe uma coleção dos meus artigos?
MARTINS - Obrigado, cá os tenho.
PACHECO - Bem, sem mais cerimônia.
CENA III
editarMartins, Silveira
MARTINS - Que me dizes a isto?
SILVEIRA - É um parasita, está claro.
MARTINS - E virá jantar?
SILVEIRA - Com toda a certeza.
MARTINS - Ora esta!
SILVEIRA - É apenas o começo; não passas ainda de um quase-ministro. Que acontecerá quando o fores de todo?
MARTINS - Tal preço não vale o trono.
SILVEIRA - Ora, aprecia lá a minha filosofia. Só me ocupo dos meus alazões, mas quem se lembra de me vir oferecer artigos para ler e estômagos para alimentar? Ninguém. Feliz obscuridade!
MARTINS - Mas a sem-cerimônia.
SILVEIRA - Ah! querias que fossem acanhados? São lestos, desembaraçados, como em suas próprias casas. Sabem tocar a corda.
MARTINS - Mas, enfim, não há muitos como este. Deus nos livre! Seria uma praga! Que maçante! Se não lhe falas em cavalos ainda aqui estava! (Batem palmas). Será outro?
SILVEIRA - Será o mesmo?
CENA IV
editarOs mesmos, Carlos Bastos
BASTOS - Meus senhores...
MARTINS - Queira sentar-se. (Sentam-se). Que deseja?
BASTOS - Sou filho das musas.
SILVEIRA - Bem, com licença.
MARTINS - Onde vais?
SILVEIRA - Vou lá dentro falar à prima.
MARTINS (baixo) - Presta-me o auxílio dos teus cavalos.
SILVEIRA (baixo) - Não é possível, este conhece o Pégaso. Com licença.
CENA V
editarMartins, Bastos
BASTOS - Dizia eu que sou filho das musas... Com efeito, desde que me conheci, achei-me logo entre elas. Elas me influÍram a inspiração e o gosto da poesia, de modo que, desde os mais tenros anos, fui poeta.
MARTINS - Sim, senhor, mas...
BASTOS - Mal comecei a ter entendimento, achei-me logo entre a poesia e a prosa, como Cristo entre o bom e o mau ladrão. Ou devia ser poeta, conforme me pedia o gênio, ou lavrador, conforme meu pai queria. Segui os impulsos do gênio; aumentei a lista dos poetas e diminui a dos lavradores.
MARTINS - Porém...
BASTOS - E podia ser o contrário? Há alguém que fuja á sua sina? V. Excia. não é um exemplo? Não se acaba de dar às suas brilhantes qualidades políticas a mais honrosa sanção? Corre ao menos por toda a cidade.
MARTINS - Ainda não é completamente exato.
BASTOS - Mas há de ser, deve ser. (Depois de uma pausa). A poesia e a política acham-se ligadas por um laço estreitíssimo. O que é a política? Eu a comparo a Minerva. Ora, Minerva é filha de Júpiter, como Apolo. Ficam sendo, portanto, irmãos. Deste estreito parentesco nasce que a minha musa, apenas soube do triunfo político de V. Excia., não pude deixar de dar alguma cópia de si. Introduziu-me na cabeça a faísca divina, emprestou-me as suas asas e arrojou-me até onde se arrojava Pindaro. Há de me desculpar, mas agora mesmo parece-me que ainda por lá ando.
MARTINS (á parte) - Ora dá-se.
BASTOS - Longo tempo vacilei; não sabia se devia fazer uma ode ou um poema. Era melhor o poema, por oferecer um quadro mais largo, e poder assim conter mais comodamente todas as ações grandes da vida de V. Excia.; mas, um poema só deve pegar do herói quando ele morre; e Vossa Excia., por fortuna nossa, ainda se acha entre os vivos. A ode prestava-se mais, era mais curta e mais própria. Desta opinião foi a musa que me inspirou a melhor composição que até hoje tenho feito. V. Excia. vai ouvi-la. (Mete a mão no bolso).
MARTINS - Perdão, mas agora não me é possível.
BASTOS - Mas...
MARTINS - Dê cá; lerei mais tarde. Entretanto, cumpre-me dizer que ainda não é cabida, porque ainda não sou ministro.
BASTOS - Mas ha de ser, deve ser. Olhe, ocorre-me uma coisa. Naturalmente hoje á tarde já isso está decidido. Seus amigos e parentes virão provavelmente jantar com V. Excia.; então no melhor da festa, entre a pêra e o queijo, levanto-me eu, como Horácio à mesa de Augusto, e desafio a minha ode! Que acha? É muito melhor, é muito melhor.
MARTINS - Será melhor não a ler; pareceria encomenda.
BASTOS - Oh! modéstia! Como assenta bem em um ministro!
MARTINS - Não é modéstia.
BASTOS - Mas quem poderá supor que seja encomenda? O seu caráter de homem público repele isso, tanto quanto repele o meu caráter de poeta. Há de se pensar o que realmente é: homenagem de um filho das musas a um aluno de Minerva. Descanse, conte com a sobremesa poética.
MARTINS - Enfim...
BASTOS - Agora, diga-me, quais são as dúvidas para aceitar esse cargo?
MARTINS - São secretas.
BASTOS - Deixe-se d'isso; aceite, que é o verdadeiro. V. Excia. deve servir o país. É o que eu sempre digo a todos... Ah! não sei se sabe: de há cinco anos a esta parte, tenho sido cantor de todos os ministérios. É que, na verdade, quando um ministério sobe ao poder, há razões para acreditar que fará a felicidade da nação. Mas nenhum a fez; este há de ser exceção: V. Excia. está nele e há de obrar de modo que mereça as bênçãos do futuro. Ah! os poetas são um tanto profetas.
MARTINS (levantando-se) - Muito obrigado. Mas há de me desculpar. (Vê o relógio). Devo sair.
BASTOS (levantando-se) - Eu também saio e terei muita honra de ir à ilharga de V. Excia.
MARTINS - Sim... mas, devo sair daqui a pouco.
BASTOS (sentando-se) - Bem, eu espero.
MARTINS - Mas é que eu tenho de ir para o interior de minha casa escrever umas cartas.
BASTOS - Sem cerimônia. Sairemos depois e voltaremos... V. Excia. janta ás cinco?
MARTINS - Ah! quer esperar?
BASTOS - Quero ser dos primeiros que
o abracem, quando vier a confirmação da notícia; quero, antes de todos, estreitar nos braços o ministro que vai salvar a nação.
MARTINS (meio zangado) - Pois fique, fique.
CENA VI
editarOs mesmos, Mateus
MATEUS - É um crIado de V. Excia.
MARTINS - Pode entrar.
BASTOS (á parte) - Será algum colega? chega tarde!
MATEUS - Não tenho a honra de ser conhecido por V. Excia., mas, em poucas palavras, direi quem sou...
MARTINS - Tenha a bondade de sentar-se.
MATEUS (vendo Bastos) - Perdão; está com gente; voltarei em outra ocasião.
MARTINS - Não, diga o que quer, este senhor vai já.
BASTOS - Pois não! (À parte) Que remédio! (Alto) Às ordens de V. Excia.; até logo... não me demoro muito.
CENA VII
editarMARTINS, MATEUS
MARTINS - Estou ás suas ordens.
MATEUS - Primeiramente deixe-me dar-lhe os parabéns; sei que vai ter a honra de sentar-se nas poltronas do Executivo e eu acho que é do meu dever congratular-me com a nação.
MARTINS - Muito obrigado. (À parte) É sempre a mesma cantilena.
MATHEU5 - O país tem acompanhado os passos brilhantes da carreira política de V. Excia. Todos contam que, subindo ao ministério, V. Excia. vai dar à sociedade um novo tom. Eu penso do mesmo modo. Nenhum dos gabinetes anteriores compreendeu as verdadeiras necessidades da pátria. Uma delas é a idéia que eu tive a honra de apresentar há cinco anos, e para cuja realização ando pedindo um privilégio. Se V. Excia. não tem agora muito que fazer, vou explicar-lhe a minha idéia.
MARTINS - Perdão; mas como eu posso não ser ministro, desejava não entrar por ora no conhecimento de uma coisa que só ao ministro deve ser comunicada.
MATEUS - Não ser ministro ! Vossa Excia. não sabe o que está dizendo... Não ser ministro é, por outros termos, deixar o país à beira do abismo com as molas do maquinismo social emperradas... Não ser ministro! Pois é possível que um homem, com os talentos e os instintos de V. Excia., diga semelhante barbaridade? É uma barbaridade. Eu já não estou em mim... Não ser ministro!
MARTINS - Basta, não se aflija desse modo.
MATEUS - Pois não me hei de afligir?
MARTINS - Mas então a sua idéia?
MATHEUS (depois de limpar a testa com
o lenço) - A minha idéia é simples como água. Inventei uma peça de artilharia; coisa inteiramente nova; deixa atrás de si tudo o que até hoje tem sido descoberto. É um invento que põe na mão do país que o possuir a soberania do mundo.
MARTINS - Ah! Vejamos.
MATHEUS - Não posso explicar o meu segredo porque seria perdê-lo. Não é que eu duvide da discrição de V. Excia.; longe de mim semelhante idéia; mas é que Vossa Excia. sabe que estas coisas têm mais virtude quando são inteiramente secretas.
MARTINS - É justo; mas, diga-me lá, quais são as propriedades da sua peça?
MATHEUS - São espantosas. Primeiramente, eu pretendo denominá-la: O raio de Júpiter, para honrar com um nome majestoso a majestade do meu invento. A peça é montada sobre uma carreta, a que chamarei locomotiva, porque não é outra coisa. Quanto ao modo de operar, é aí que está o segredo. A peça tem sempre um deposito de pólvora e bala para carregar, e vapor para mover a máquina. Coloca-se no meio do campo e deixa-se... Não lhe bulam. Em começando o fogo, entra a peça a mover-se em todos os sentidos, descarregando bala sobre bala, aproximando-se ou recuando, segundo a necessidade. Basta uma para destroçar um exército; calcule o que não serão umas doze, como esta. É ou não a soberania do mundo?
MARTINS - Realmente, é espantoso. São peças com juízo.
MATHEUS - Exatamente.
MARTINS - Deseja então um privilégio?
MATEUS - Por ora... É natural que a posteridade me faça alguma coisa... Mas tudo isso pertence ao futuro.
MARTINS - Merece, merece.
MATEUS - Contento-me com o privilégio... Devo acrescentar que alguns ingleses, alemães e americanos que, não sei como, souberam deste invento, já me propuseram, ou a venda dele ou uma carta de naturalização nos respectivos países; mas eu amo à minha pátria e os meus ministros.
MARTINS - Faz bem.
MATHEUS - Está V. Excia. informado das virtudes da minha peça. Naturalmente daqui a pouco é ministro. Posso contar com a sua proteção?
MARTINS - Pode; mas eu não respondo pelos colegas.
MATEUS - Queira V. Excia. e os colegas cederão. Quando um homem tem as qualidades e a inteligência superior de V. Excia., não consulta, domina. Olhe, eu fico descansado a este respeito.
CENA VIII
editarOs mesmos, Silveira
MARTINS - Fizeste bem em vir. Fica um momento conversando com este senhor. É um inventor e pede um privilégio. Eu vou sair; vou saber novidades. (À parte) Com efeito, a coisa tarda. (Alto) Até logo. Aqui estarei sempre às suas ordens. Adeus, Silveira.
SILVEIRA (baixo a Martins) - Então, deixas-me só?
MARTINS (baixo) - Agüenta-se. (Alto) Até sempre!
MATEUS - Às ordens de V. Excia.
CENA IX
editarMateus, Silveira
MATEUS - Eu também me vou embora. É parente do nosso ministro?
SILVEIRA - Sou primo.
MATEUS - Ah!
SILVEIRA - Então V. S. inventou alguma coisa? Não foi a pólvora?
MATEUS - Não foi, mas cheira a isso... Inventei uma peça.
SILVEIRA - Ah!
MATEUS - Um verdadeiro milagre... Mas não é o primeiro; tenho inventado outras coisas. Houve um tempo em que me zanguei; ninguém fazia caso de mim; recolhi-me ao silêncio, disposto a não inventar mais nada. Finalmente, a vocação sempre vence; comecei de novo a inventar, mas nada fiz ainda que chegasse á minha peça. Hei de dar nome ao século XIX.
CENA X
editarOs mesmos, Luiz Pereira
PEREIRA - S. Excia. está em casa?
SILVEIRA - Não, senhor. Que desejava?
PEREIRA - Vinha dar-lhe os parabéns.
SILVEIRA - Pode sentar-se.
PEREIRA - Saiu?
SILVEIRA - Há pouco.
PEREIRA - Mas volta?
SILVEIRA - Há de voltar.
PEREIRA - Vinha dar-lhe os parabéns. e convidá-lo.
SILVEIRA - Para que, se não é curiosidade?
PEREIRA - Para um jantar.
SILVEIRA - Ah! (À parte) Está feito. Este oferece jantares.
PEREIRA - Está já encomendado. Lá se encontrarão varias notabilidades do país. Quero fazer ao digno ministro, sob cujo teto tenho a honra de falar neste momento, aquelas honras que o talento e a virtude merecem.
SILVEIRA - Agradeço em nome dele esta prova...
PEREIRA - V. S. pode até fazer parte da nossa festa.
SILVEIRA - É muita honra.
PEREIRA - É meu costume, quando sobe um ministério, escolher o ministro mais simpático e oferecer-lhe um jantar. E há uma coisa singular: conto os meus filhos por ministérios. Casei-me em 50; daí para cá, tantos ministérios, tantos filhos. Ora, acontece que de cada pequeno meu é padrinho um ministro e fico eu assim espiritualmente aparentado com todos os gabinetes. No ministério que caiu, tinha eu dois compadres. Graças a Deus, posso fazê-lo sem diminuir as minhas rendas.
SILVEIRA (á parte) - O que lhe come o jantar é quem batiza o filho.
PEREIRA - Mas o nosso ministro, demorar-se-á muito?
SILVEIRA - Não sei... ficou de voltar.
MATEUS - Eu peço licença para me retirar. (À parte, a Silveira) Não posso ouvir isto.
SILVEIRA - Já se vai?
MATEUS - Tenho voltas que dar; mas logo cá estou. Não lhe ofereço para jantar, porque vejo que S. Excia. janta fora.
PEREIRA - Perdão, se me quer dar a honra.
MATHEUS - Honra... sou eu que a recebo... aceito, aceito com muito gosto.
PEREIRA - É no Hotel Inglês, às cinco horas.
CENA XI
editarOs mesmos, Agapito, Müller
SILVEIRA - Oh! entra, Agapito!
AGAPITO - Como estás?
SILVEIRA - Traze parabéns?
AGAPITO - E pedidos.
SILVEIRA - O que é?
AGAPITO - Apresento-te o Sr. Müller, cidadão hanoveriano.
SILVEIRA (a Müller) Queira sentar-se.
AGAPITO - O Sr. Müller chegou há quatro meses da Europa e deseja contratar o teatro lírico.
SILVEIRA - Ah!
MÜLLER - Tenho debalde perseguido os ministros, nenhum me tem atendido. Entretanto, o que eu proponho é um verdadeiro negócio da China.
AGAPITO (a Müller) - Olhe que não é ao ministro que está falando, é ao primo dele.
MÜLLER - Não faz mal. Veja se não é negócio da China. Proponho fazer cantar os melhores artistas da época. Os senhores vão ouvir coisas nunca ouvidas. Verão o que é um teatro lírico.
SILVEIRA - Bem, não duvido.
AGAPITO - Somente, o Sr. Müller pede uma subvenção.
SILVEIRA - É justo. Quanto?
MÜLLER - Vinte e cinco contos por mês.
MATEUS - Não é má; e os talentos do país? Os que tiverem à custa do seu trabalho produzido inventos altamente maravilhosos? O que tiver posto na mão da pátria a soberania do mundo?
AGAPITO - Ora, senhor! A soberania do mundo é a música, que vence a ferocidade. Não sabe a história de Orfeu?
MÜLLER - Muito bem!
SILVEIRA - Eu acho a subvenção muito avultada.
MÜLLER - E se eu lhe provar que não é?
SILVEIRA - É possível, em relação ao esplendor dos espetáculos; mas, nas circunstâncias do país...
AGAPITO - Não há circunstâncias que procedam contra a música... Deve ser aceita a proposta do Sr. Müller.
MÜLLER - Sem dúvida.
AGAPITO - Eu acho que sim. Há uma porção de razões para demonstrar a necessidade de um teatro lírico. Se o país é feliz, é bom que ouça cantar, porque a música confirma as comoções da felicidade. Se o país é infeliz, é também bom que ouça cantar, porque a música adoça as dores. Se o país é dócil, é bom que ouça música, para nunca se lembrar de ser rebelde. Se o país é rebelde, é bom que ouça música, porque a música adormece os furores e produz a brandura. Em todos os casos a música é útil. Deve ser até um meio do governo.
SILVEIRA - Não contesto nenhuma dessas razões; mas meu primo, se for efetivamente ministro, não aceitará semelhante proposta.
AGAPITO - Deve aceitar; mais ainda, se és meu amigo, deves interceder pelo Sr. Müller.
SILVEIRA - Por que?
AGAPITO (baixo, a Silveira) - Filho, eu namoro a prima-dona! (Alto) Se me perguntarem quem é a prima-dona, não saberei responder; é um anjo e um diabo; é a mulher que resume as duas naturezas, mas a mulher perfeita, completa, única. Que olhos! que porte! que donaire! que pé! que voz!
SILVEIRA - Também a voz?
AGAPITO - Nela não há primeiros ou últimos merecimentos. Tudo é igual; tem tanta formosura, quanta graça, quanto talento! Se a visses! Se a ouvisses!
MÜLLER - E as outras? Tenho uma andaluza... (levando os dedos á boca e beijando-os) divina! É a flor das andaluzas!
AGAPITO - Tu não conheces as andaluzas.
SILVEIRA - Tenho uma que me mandaram de presente.
MÜLLER - Pois, senhor, eu acho que o governo deve aceitar com ambas as mãos a minha proposta.
AGAPITO (baixo, a Silveira) - E depois, eu acho que tenho direito a este obséquio; votei com vocês nas eleições.
SILVEIRA - Mas...
AGAPITO - Não mates o meu amor ainda nascente.
SILVEIRA - Enfim, o primo resolverá.
CENA XII
editarOs mesmos, Pacheco, Bastos
PACHECO - Dá licença?
SILVEIRA (á parte) - Oh! aí está toda a procissão.
BASTOS - S. Excia.?
SILVEIRA - Saiu. Queiram sentar-se.
PACHECO - Foi naturalmente ter com os companheiros para assentar na política do gabinete. Eu acho que deve ser a política moderada. É a mais segura.
SILVEIRA - É a opinião de nós todos.
PACHECO - É a verdadeira opinião. Tudo o que não for isto é sofismar a situação.
BASTOS - Eu não sei se isso é o que a situação pede; o que sei é que S. Excia. deve colocar-se na altura que lhe compete, a altura de um Hércules. O deficit é o leão de Neméia; é preciso mata-lo. Agora, se para aniquilar esse monstro é preciso energia ou moderação, isso não sei; o que sei é que é preciso talento e muito talento, e nesse ponto ninguém pode ombrear com Sua Excia.
PACHECO - Nesta última parte concordamos todos.
BASTOS - Mas que moderação é essa? Pois faz-se jus aos cantos do poeta e ao cinzel do estatuário com um sistema de moderação? Recorramos aos heróis... Aquiles foi moderado? Heitor foi moderado? Eu falo pela poesia, irmã carnal da política, porque ambas são filhas de Júpiter.
PACHECO - Sinto não ter agora os meus artigos. Não posso ser mais claro do que fui naquelas páginas, realmente as melhores que tenho escrito.
BASTOS - Ah! V. S. também escreve?
PACHECO - Tenho escrito vários artigos de apreciação política.
BASTOS - Eu escrevo em verso; mas nem por isso deixo de sentir prazer, travando conhecimento com V. S..
PACHECO - Oh! senhor.
BASTOS - Mas pense e há de concordar comigo.
PACHECO - Talvez... Eu já disse que sou da política de S. Excia.; e contudo ainda não sei (para falar sempre em Júpiter...), ainda não sei se ele é filho de Júpiter Libertador ou Júpiter Stator; mas já sou da política de S. Excia.; e isto porque sei que, filho de um ou de outro, há de sempre governar na forma indicada pela situação, que é a mesma já prevista nos meus artigos, principalmente o V...
CENA XIII
editarOs mesmos, Martins
BASTOS - Aí chega S. Excia.
MARTINS - Meus senhores...
SILVEIRA (apresentando Pereira) - Aqui o senhor vem convidar-te para jantar com ele.
MARTINS - Ah!
PEREIRA - É verdade; soube da sua nomeação e vim, conforme o coração me pediu, oferecer-lhe uma prova pequena da minha simpatia.
MARTINS - Agradeço a simpatia; mas o boato que correu hoje, desde manhã, é falso... O ministério está completo, sem min.
TODOS - Ah!
MATEUS - Mas quem são os novos?
MARTINS - Não sei.
PEREIRA (à parte) - Nada, eu não posso perder um jantar e um compadre.
BASTOS (à parte) - E a minha ode? (A Matheus) Fica?
MATEUS - Nada, eu vou. (Aos outros) Vou saber quem é o novo ministro para oferecer-lhe o meu invento...
BASTOS - Sem incômodo, sem incômodo.
SILVEIRA (a Bastos e Mateus) - Esperem um pouco.
PACHECO - E não sabe qual será a política do novo ministério? É preciso saber. Se não for a moderação, está perdido. Vou averiguar isso.
MARTINS - Não janta conosco?
PACHECO - Um destes dias... obrigado... até depois...
SILVEIRA - Mas esperem: onde vão? Ouçam ao menos uma história. É pequena mas conceituosa. Um dia anunciou-se um suplício. Toda gente correu a ver o espetáculo feroz. Ninguém ficou em casa: velhos, moços, homens, mulheres, crianças, tudo invadiu a praça destinada à execução. Mas, porque viesse o perdão à última hora, o espetáculo não se deu e a forca ficou vazia. Mais ainda: o enforcado, isto é, o condenado, foi em pessoa à praça pública dizer que estava salvo e confundir com o povo as lágrimas de satisfação. Houve um rumor geral., depois um grito, mais dez, mais cem, mais mil, romperam de todos os ângulos da praça, e uma chuva de pedras deu ao condenado a morte de que o salvara a real clemência. - Por favor, misericórdia para este (apontando para Martins). Não tem culpa nem da condenação, nem da absolvição.
PEREIRA - A que vem isto?
PACHECO - Eu não lhe acho graça alguma!
BASTOS - Histórias da carochinha!
MATEUS - Ora adeus! Boa tarde.
Os OUTROS - Boa tarde.
CENA XIV
editarMartins e Silveira
MARTINS - Que me dizes a isto?
SILVEIRA - Que hei de dizer! Estavas a surgir... dobraram o joelho: repararam que era uma aurora boreal, voltaram as costas e lá se vão em busca do sol... São especuladores!
MARTINS - Deus te livre destes e de outros...
SILVEIRA - Ah! livra... livra. Afora os incidentes como o de Botafogo... ainda não me arrependi das minhas loucuras, como tu lhes chamas. Um alazão não leva ao poder, mas também não leva á desilusão.
MARTINS - Vamosmuquir.