1Que néscio, que era eu então,
quando o cuidava, o não era,
mas o tempo, a idade, a era
puderam mais que a razão:
fiei-me na discrição,
e perdi-me, em que me pes,
e agora dando ao través,
vim no cabo a entender,
que o tempo veio a fazer,
o que a razão nunca fez. .
2O tempo me tem mostrado,
que por me não conformar
com o tempo, e co lugar
estou de todo arruinado:
na política de estado
nunca houve princípios certos,
e posto que homens espertos
alguns documentos deram,
tudo, o que nisto escreveram,
são contingentes acertos.
3Muitos por vias erradas
têm acertos mui perfeitos
muitos por meios direitos,
não dão sem erro as passadas:
cousas tão disparatadas
obra-as a sorte importuna,
que de indignos é coluna,
e se me há de ser preciso
lograr fortuna sem siso,
eu renuncio à fortuna.
4Para ter por mim bons fados
escuso discretos meios,
que há muitos burros sem freios,
e mui bem afortunados:
logo os que andam bem livrados,
não é própria diligência,
é o céu, e sua influência,
são forças do fado puras,
que põem mantidas figuras
do teatro da prudência.
5De diques de água cercaram
esta nossa cidadela
todos se molharam nela,
e todos tontos ficaram:
eu, a quem os céus livraram
desta água fonte de asnia,
fiquei são da fantesia
por meu mal, pois nestes tratos
entre tantos insensatos
por sisudo eu só perdia.
6Vinham todos em manada
um simples, outro doudete,
este me dava um moquete,
aqueloutro uma punhada:
tá, que sou pessoa honrada,
e um homem de entendimento;
qual honrado, ou qual talento?
foram-me pondo num trapo,
i-me tornado um farrapo,
porque um tolo fará cento.
7Considerei logo então
os baldões, que padecia,
vagarosamente um dia
com toda a circunspeção:
assentei por conclusão
ser duro de os corrigir,
e livrar do seu poder,
dizendo com grande mágoa:
se me não molho nesta água,
mal posso entre estes viver.
8Eia, estamos na Bahia,
onde agrada a adulação,
onde a verdade é baldão,
e a virtude hipocrisia:
sigamos esta harmonia
de tão fátua consonância,
e inda que seja ingnorância
seguir erros conhecidos,
sejam-me a mim permitidos,
se em ser besta está a ganância
9Alto pois com planta presta
me vou ao Dique botar,
e ou me hei de nele afogar,
ou também hei de ser besta:
do bico do pé à testa
lavei as carnes, e os ossos:
ei-los vêm com alvoroços
todos para mim correndo.
i-los me abraçam, dizendo.
agora sim, que é dos nossos.
10Dei por besta em mais valer,
um me serve, outro .me presta;
não sou eu de todo besta,
pois tratei de o parecer:
assim vim a merecer
favores, e aplausos tantos
pelos meus néscios encantos,
que enfim, e por derradeiro
fui galo de seu poleiro,
e lhes dava os dias santos.
11Já sou na terra bem visto,
louvado, e engrandecido,
já passei de aborrecido
ao auge de ser benquisto:
já entre os grandes me alisto,
e amigos são, quando topo,
estou fábula de Esopo
vendo falar animais,
e falando eu que eles mais,
bebemos todos num copo.
12Seja pois a conclusão,
que eu me pus aqui a escrever,
o que devia fazer,
mas que tal faça, isso não:
decrete a divina mão,
influam malignos fados,
seja eu entre os desgraçados
exemplo de desventura:
não culpem minha cordura,
que eu sei, que são meus pecados.